terça-feira, 18 de março de 2014

GYMNÁSIO SÃO JOSÉ

GYMNÁSIO SÃO JOSÉ
(reminiscências do Dr. Plínio Augusto de Meireles).
Ainda há pouco, lendo uma das crônicas de Rubem Alves, onde ele fala de um certo Professor Severino que, ao introduzir seus alunos no encanto da poesia, sugeria que eles fizessem uma lista dos sons que ouviam na sua infância como: o canto do galo, o trinar do grilo, o sino das igrejas, o cantar do carro de bois, o apito da locomotiva a vapor etc.
Também lembra que T. S. Eliot escreveu que: "ao final das nossas longas andanças, chegamos finalmente ao lugar de onde partimos, e o vemos pela primeira vez". Agora nossos olhos são diferentes; são os olhos da saudade.
Assim me lembrei que no ano de 2012, não me recordo o mês, retornando da minha terra natal, Guidoval, em direção a Belo Horizonte, ao passar pela estrada que liga Ubá a Tocantins, ao olhar à esquerda logo na saída, deparei com uma paisagem bem conhecida minha. Estava passando em frente ao antigo "Gymnasio São José". Um internato dirigido pelo Dr. Newton Carneiro, aonde chegavam alunos de diversas localidades, inclusive de fora do Estado de Minas Gerais.
Não tive dúvidas. No primeiro retorno tomei a direção de volta e entrei naquele sítio. Deparei com as instalações preservadas do que foi aquele estabelecimento de ensino. Não sei até quando funcionou.
Procurei algum encarregado e pedi permissão para percorrer todas as instalações. Foi emocionante. Naveguei no passado e como falou Eliot, eu também tudo vi realmente pela primeira vez, certamente com os olhos da saudade. Naquele ano de 1952, eu, o meu irmão Aulo, e o amigo e conterrâneo Ronon Rodrigues estávamos ali internos para estudar na primeira série. Tínhamos que pensar muito nos estudos e não tínhamos ainda a consciência de observador. 
Não podíamos imaginar, então, que aquele ambiente todo viraria história em tempo não tão distante.
Logo ao transpor a porta de entrada avistei a escadaria que leva ao piso superior. No alto, em uma viga de grosso madeiro lavrado, ainda estava a inscrição em latim idealizada e enunciada pelo fundador do estabelecimento, Dr. José Januário  Carneiro, o "Dr. Fecas": "DULCE ET DECORUM PRO JUVENTUTE LABORARE" (Como é doce trabalhar pela juventude).
Antes de subir, passei pelas salas de aula que se localizavam no piso térreo, onde avistei as mesmas carteiras em que estudávamos no  ano de 1952, um amplo salão de estudos chamado "re-pouso" no qual passávamos a maior parte das tardes estudando e fazendo os deveres passados pelos professores, ainda mobiliado da mesma forma, e o refeitório onde tomávamos todas as refeições. Na parte dos  fundos um longo corredor com muro baixo para o exterior do prédio, no qual estavam instaladas mais de trinta  torneiras de água devidamente amparadas por uma mureta de escoamento, local onde fazíamos a higiene bucal matinal, após as refeições e à noite antes de dormir.
No início desse corredor, bem no alto afixado em uma peça de madeira, ficava um sino de bronze, de uns 40 centímetros de altura e cerca de 30 de boca, cujas badaladas nos acordavam pela manhã e anunciavam o início, os intervalos e o final das aulas, bem como os horários das refeições, do "repouso" (hora de estudo) à tarde e da hora de se recolher para dormir.
No piso superior ficavam os aloja mentos dos alunos, com as camas alinhadas lado a lado, tal como num quartel militar. Na época camas de molas, as famosas "Camas Patente", com colchões de capim, às vezes denominados crina vegetal. Havia o alojamento dos maiores, alunos que frequentavam a 3ª e 4ª séries ginasial e o dos menores, os que frequentavam a 1ª e 2ª séries.
Durante a noite esses dormitórios eram vigiados pelos chamados Chefes de Disciplina, escolhidos entre os alunos maiores.

Eram encarregados de manter a ordem, evitar balbúrdias noturnas e garantir o sono tranquilo e reparador das energias para as atividades do dia seguinte.
 Esses alojamentos eram ladeados por uma ampla varanda cercada por um gradil baixo de madeira.
Se algum aluno cometia indisciplina no alojamento, o Chefe poderia fazer-lhe uma advertência que, se não acatada, poderia resultar na sua expulsão do alojamento por tempo determinado pelo Chefe, ficando do lado de fora, na varanda, ainda que estivesse o tempo frio.
Me lembro muito bem. Aquele que sofre, nunca esquece. O Chefe de disciplina dos menores naquele ano era o conterrâneo Francisco Pinto de Aguiar, o Chiquinho do  Casinho. Numa certa noite, não me lembro a razão ou o que eu teria feito, mas o Chiquinho me pôs para fora do alojamento e eu passei quase toda a noite dormindo no piso da varando só de pijama, que naquela época era feito de tecido leve mas de mangas e calças compridas.
Além dos chefes de disciplina, havia outro aluno escolhido entre os maiores, geralmente da 4ª série, para ser o "badalista"; aquele que tocava o sino nos momentos devidos. Ao que me lembro, o badalista era o Miguel, não me recordo o seu sobrenome, mas que não gostava do apelido que lhe deram de boca murcha, "Miguel boca murcha".
No terreno do ginásio havia uma represa onde era permitido a natação e banho, salvo engano, às quartas feiras. Mesmo com a água toda barrenta, vermelha, não nos importávamos. Ficávamos lá todo o tempo permitido. Aos olhos de hoje, se um dos pais, principalmente as mães, vissem aquela piscina, com certeza chamariam a ANVISA para interditá-la. Mas na época isso não era levado tão a sério e não me lembro de que algum aluno tenha adoecido pelos banhos lamacentos. Hoje não se fazem mais crianças (ou pais) como naquele tempo.
Como não poderia deixar de ser, estando no Brasil, no ginásio havia também um campo de futebol, esporte também conduzido pelo professor de Educação Física.
Quando fomos admitidos alunos desse ginásio, aprovados em exame depois de frequentar, já naquela época, um curso preparatório, no nosso enxoval de interno, além do nosso uniforme de brim cáqui, no estilo da farda policial de Minas Gerais, devíamos levar também uni-formes adequados à prática da educação física e do futebol. Nesse particular me recordo de que, no primeiro dia de treino o professor colocou todos os interessados numa ampla "meia lua" no campo. Observando uns e outros, só de olho, pela sua experiência, selecionou os dois times a disputarem a partida. Nesse primeiro teste, só de olho, já "levei cerca". De cara ele percebeu que eu era um "perna de pau". Meu irmão, contudo, foi selecionado; não me lembro se o Ronon fora também; meu irmão jogava no colégio e depois em Guidoval, no ginásio e até no time do Cruzeiro local. Eu no máximo conseguia alguma brecha nos times de roça e, apesar das cacetadas não era expulso porque era filho do Dr. Mario.
Mas voltando ao São José, no piso dos alojamentos dormitórios havia um grande salão onde deixávamos os nossos pertences e roupas que ficavam guardados em um Baú grande de madeira, fechado a chave que trazíamos conosco. Era nesse baú que também guardávamos, junto com roupas, doces e outras guloseimas que as nossas mães nos enviavam. Esse baú era diariamente visitado depois do almoço para saborearmos as guloseimas maternas, mesmo que nos servissem sobremesa no refeitório.
Ao final das tarde, no intervalo depois do jantar até a hora de dormir, ficávamos no pátio externo à entrada do prédio do ginásio, bastante amplo, onde se conversava com os colegas, jogávamos pelada com bola de meia, e espantávamos pernilongos e outros insetos queimando bosta seca de vaca.
Da entrada do prédio do ginásio avistávamos do lado oposto a residência do Diretor e casas de alguns funcionários.
Nos fins de semana podíamos passar o dia todo na cidade de Ubá. Os internos cujas famílias residiam nessa cidade iam para as suas respectivas casas. Nós, os de outras localidades, passávamos o dia perambulando por diversos locais da cidade, indo ao cinema da matinê, tomando sorvetes e picolés, visitando algum conhecido, etc.
As saídas se revezavam. Se num sábado saiam os maiores, no domingo saiam os menores. Na semana seguinte a escala se invertia.
Para a saída caminhávamos a pé quase dois quilômetros até a cidade, acompanhados do Chefe de Disciplina. Para nós crianças essa distância parecia enorme, uma viagem. O retorno se dava, salvo engano, lá pelas sete ou oito horas da noite. Alguns se reuniam inicialmente no Bar Municipal, localizado na Praça ao lado da Igreja de São Januário. Esse bar , ainda existente no mesmo local, hoje mais cervejaria, naquela época servia lanches e salgadinhos em geral, além de uns deliciosos bolinhos açucarados assados em forminhas de empadas. Esses, que tanto me ficaram na memória visual e gustativa, passei a produzi-los em minha casa já há uns vinte anos e são gulosamente saboreados a quem os ofereço. Deixando desse bar, caminhávamos até o fim da cidade, na saída para Tocantins para, em outro bar cujo nome não me lembro, esperarmos pelos retardatários. Voltávamos no escuro, somente orientados pelo clarão da lua ou apenas pela luz das estrelas.
 Essas saídas poderiam ser suspensas no caso de mau comportamento do aluno durante a semana. Qualquer alteração comportamental nas salas de aula levava o professor a aplicar no aluno uma penalidade chamada "Seta". Caso o aluno levasse mais de três setas na semana, ficava impedido de ir até a cidade. Além disso, dependendo do teor da proeza, poderia ser instado a escrever "Linhas", cujas frases eram determinadas pelo professor algoz, por exemplo: escrever 100 vezes ou até mesmo quinhentas vezes: "Não devo me comportar mal na sala de aula e respeitar o professor". Para isto recebíamos as folhas de papel almaço necessárias à tarefa. Como as crianças naquela época já eram bem espertas,  costumávamos amarrar até quatro lápis inclinados, no espaçamento das linhas do papel, e conseguíamos escrever em um só movimento e de uma só vez até quatro linhas, reduzindo assim o tempo do nosso castigo.
O Ginásio São José era muito conceituado, não somente na região, e grandes nomes de políticos e profissionais de diversas áreas passaram por lá.
Tenho lembrança  de alguns professores, certamente não de todos. O Dr. Newton Carneiro, era o Diretor, filho do Fundador e pai de um dos nossos colegas da 1ª série, o Marciano, e era o professor de francês, falando e escrevendo com desenvoltura esse idioma. O Professor Manoel Reis, lecionava Latim. É, estudávamos Latim no primeiro ano ginasial. O Professor Manuel Arthidoro, lecionava Matemática, Desenho Geométrico e Trabalhos Manuais. Nessa última disciplina aprendíamos a trabalhar com madeira, cartão e argila. A Professora Nilda, filha do Diretor, lecionava História, O Professor Honorico, irmão do Diretor, não me lembro a matéria. Me lembro dele já em 1956, no Colégio Estadual Raul Soares, lecionando química. Não me lembro quem lecionava Português e Geografia. Música, acho que era a professora Maria Campos. Essa eu a visitei já nos seus 100 anos no Asilo de Ubá. Não me lembro se tínhamos aulas de religião mas, o ginásio contava com a assistência  do Padre Luiz, quase como um ca-pelão, mas não residia no local.
O Dr. Newton usava ininterruptamente uma boina preta de seda, em todos os locais que frequentava. Ao que falavam, ele teria sofrido algum distúrbio fisiológico que lhe produziu a queda total dos cabelos. Diziam também que ele obtivera uma permissão especial do Papa Pio XII para assistir à Santa Missa e outras cerimônias litúrgicas coberto pela citada boina. Quando ele se dirigia à cidade ou outros locais fora do ginásio em ambientes externos, a boina era substituída por um chapéu de lebre, com tal rapidez e eficiência, que não permitia a terceiros observar a sua calva. Hoje penso que seu comportamento seria bem diferente, levando em conta que desde o aparecimento público do catarinense Esperidião Amim, entre outros, inclusive eu, hoje  removo todos os pelos da cabeça com lâmina afiada e ainda passo um creme para dar um brilho.
De colegas me lembro de alguns com os quais me relacionava mais ou nomes que me ficaram na memória por qualquer razão. Um que foi da nossa 1ª série e estudamos depois até a faculdade de Medicina Veterinária, também com o Ronon, foi o Jorge Rubinich, que tinha o seu irmão mais velho André em série adiante de nós. Ainda como os anteriores, da cidade de Rodeiro o Luiz (Pança); outros, como o José Nicolatino, o Catabingas, assim apelidado pelo seu hábito de apanhar do chão o toco de cigarro atirado pelos maiores fumantes. Era permitido a alguns alunos fumarem. Da cidade de Tocantins vinham o Maurício Santiago, o Jojó e seu irmão mais novo, o José Teixeira Rocha Pinto, O Zé Pururú, o José Teixeira Pires; esse, há pouco tempo atrás o encontrei em Ubá, era advogado e provedor do Asilo local. O Toninho Crispi, bem gordinho mas pudera, seu pai era o dono da Fábrica de Macarrão. Também me lembro dos Carlos Cota; este chegou a ser Deputado Federal. Um outro, salvo engano da terceira série, o Rômulo Rola, que escrevia as falas que eu deveria proferir nas reuniões do Grêmio Escolar. Eu não tinha condições de escrevê-las e era muito acanhado. Este colega o reencontramos muitos anos depois, em 1959 ou 60, quando o Ronon se empregou numa loja de roupas masculinas em Belo Horizonte, a ROLAVESTE, do mesmo proprietário de uma casa de tecidos, a Casa Rola, onde encontramos o Rômulo trabalhando como vendedor. Essa loja pertencia a um tio seu, o Senhor João Rola.
Em uma de nossas saídas, não sei se sábado ou domingo, no ano de 1952, no final de uma tarde, me lembro que na praça da Estação da Estrada de Ferro Leopoldina, uma multidão se aglomerava em frente o Cine Brasil, que naquele dia e hora estava recebendo a Cantora Ângela Maria, já no início de sua  fama, morena franzina mas esbelta. Eu a vi bem ao longe. Era muito pequeno, e não conseguia passar por toda aquela aglomeração sem me sufocar.
Uma curiosidade que chamava a atenção dos alunos era a bicicleta de um dos funcionários do ginásio, pelo fato de ter um farol muito diferente dos que conhecíamos. Era um farol de luz de carbureto. Quando escurecia o seu dono fazia gotejar água sobre o Carbureto de cálcio, produzindo o gás acetileno. Era só acender um fósforo e o gás em chama iluminava a estrada por onde ele devia passar.
Terminado o ano de 1952, aprovado na 1ª série, já estava prestes a ser inaugurado o Ginásio Guido Marlière em Guidoval. Assim, no ano seguinte eu, meu irmão, o Ronon e outros guidovalenses que estudavam também em Cataguazes e Leopoldina, para ele nos transferimos e permanecemos até a conclusão dessa etapa, para depois sairmos em busca do Curso Científico (hoje 2º grau) em outras localidades. Eu, o meu irmão e o Ronon retornamos a Ubá e nos matriculamos no Colégio Estadual Raul Soares por mais dois anos. Salvo engano o Ronon completou aí o terceiro ano. Nesse período eu e o Aulo estudamos música, violino e acordeom com a D. Chiquinha Dias Paes. Em 1958 fui para Juiz de Fora para o serviço militar e lá, juntamente com o meu irmão Aulo, passamos a estudar no Colégio Cristo Redentor, mantido pelos padres da Sociedade do Verbo Divino - SVD.
Duas curiosidades nesse ano de 1958: a primeira foi que no dia 9 de junho, juntamente com mais cinco soldados da FEA, em Benfica, participei da Guarda de Honra montada para o velório de D. Justino José  de Sant’ Ana, Bispo de Juiz de Fora falecido naquela data.
A outra que, salvo o engano do mês, mas acho que foi setembro, fui de Juiz de Fora para Ubá a convite da D. Chiquinha Dias Paes, para com ela, no Órgão, Senhor Odilon Reis, 1º violino e eu, 2º violino, executarmos um pequeno trecho do "Messias de Händel", o Aleluia, além de outras músicas, no casamento do Deputado Euro Arantes, advogado, nascido em Guidoval, famoso em Belo Horizonte pela criação do Jornal satírico o "Binômio", juntamente com seu amigo José Maria Rabelo. Foi a última vez que participei de uma apresentação tocando violino. Nunca mais toquei, mesmo tendo até hoje esse violino, todo revisado e mantido, à espera de um músico.
Foi um tempo muito bom e alegre, como quase todos os momentos passados da minha vida. Não tenho recordações de coisas e momentos desagradáveis. Se os tive, caíram no esquecimento. Alguma decepção passageira, pode ter ocorrido, mas nada que me trouxesse desgaste, sofrimento, angústia prolongada ou qualquer tipo de sequela. Até hoje acho sempre tirei vantagem até mesmo das adversidades. Acho que sou um sortudo.
Brasília, 03 de março de 2014, 03,00 horas.


 Vista lateral do Gymnasio
 
 Vista frontal do Gymnasio
 

 Sala de aula, móveis originais

 O Lavatório visto por trás
 

 O Lavatório visto de frente

O Sino anunciava os eventos

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