quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

A missa negra (Elio Gaspari em “A Ditadura Envergonhada)



A missa negra
(Elio Gaspari em “A Ditadura Envergonhada)

Às dezessete horas da sexta-feira, 13 de dezembro do ano bissexto de 1968, o marechal Arthur da Costa e Silva, com a pressão a 22 por 13, parou de brincar com palavras cruzadas e desceu a escadaria de mármore do Laranjeiras para presidir o Conselho de Segurança Nacional, reunido à grande mesa de jantar do palácio. 1 Começava uma missa negra. Composto por ministros demissíveis ad nutum, o Conselho sempre fora uma ficção. Suas decisões, sem a chancela do presidente, nada valiam. Sua competência legal para tratar da matéria levada à suposta consulta era nula.
O marechal deteve-se na porta do salão, conversando baixo com o vice-presidente Pedro Aleixo, que acabara de chegar de Belo Horizonte. Demoraram-se por quase meia hora. Quando Costa e Silva ocupou a cabeceira da mesa, cada ministro tinha uma cópia do Ato Institucional nº5 em frente a seu lugar. Dois microfones, colocados ostensivamente sobre a mesa, gravariam a sessão. A sala estava tomada pelo barulho de sirenes de veículos que circulavam no pátio da mansão.
O presidente abriu a sessão com um discurso em que se denominou "legítimo representante da Revolução de 31 de março de 1964" e lembrou que com "grande esforço [...] boa vontade e tolerância" conseguira chegar a "quase dois anos de governo presumidamente constitucional". Ofereceu ao plenário "uma decisão optativa: ou a Revolução continua, ou a Revolução se desagrega". Batendo na mesa, anunciou que "a decisão está tomada" e pediu que "cada membro diga o que pensa e o que sente" 2  . Era o primeiro discurso desconexo daquela sessão presidida pela determinação de proclamar uma ditadura. O marechal suspendeu a reunião por vinte minutos, para que cada ministro lesse o texto, e desculpou-se pela pressa. Com um preâmbulo de seis parágrafos, o Ato tinha doze artigos e cabia em quatro folhas de papel. Sua leitura atenta exigia pouco mais que cinco minutos. Costa e Silva retirou-se debaixo de aplausos.
Na volta, deu a palavra ao vice-presidente Pedro Aleixo, respeitado liberal da UDN mineira, conhecido tanto pela sua retidão como por uma solene tibieza. Sereno e com elegante pronúncia, Pedro Aleixo falou como se estivesse numa sala de aula da faculdade de direito. Defendia simultaneamente o regime constitucional e sua biografia. Mais esta que aquele. Começou ensinando que a Câmara só poderia ter dado a licença para processar Marcio Moreira Alves se agisse com base num critério político, pois não poderia fazê-lo "segundo as normas do direito aplicáveis ao caso". Ou seja, o "insólito agressor da dignidade dos elementos componentes das Forças Armadas" não podia ser processado pelo conteúdo de um discurso proferido da tribuna. O vice-presidente declarou-se favorável a um remédio constitucional - o estado de sítio - e denunciou o conteúdo do Ato que acabara de ler: "Da Constituição, que é antes de tudo um instrumento de garantia dos direitos da pessoa humana, e da garantia dos direitos políticos, não sobra [...] absolutamente nada". "Estaremos [...] instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura."
Falara o respeitado bacharel, mas cabia ao vice-presidente concluir. Com a ditadura na mão, prosseguiu: "Todo ato institucional [...] que implique na modificação da Constituição existente, é realmente um ato revolucionário. Que se torne necessário fazer essa revolução, é uma matéria que poderá ser debatida e acredito até que se pode demonstrar que essa necessidade existe". Admitiu que se o estado de sítio viesse a se mostrar insuficiente, "a própria nação [...] compreenderia a necessidade de um outro procedimento". Despediu-se reafirmando obliquamente sua discordância e, dirigindo-se a Costa e Silva, anunciou sua "certeza de que estou cumprindo um dever para comigo mesmo, um dever para com Vossa Excelência, a quem devo a maior solidariedade". Em nenhum momento Pedro Aleixo disse diretamente que condenava a promulgação do Ato. O bacharel denunciou a ditadura, mas nela se manteve vice-presidente.
"Acabamos de ouvir a palavra abalizada do vice-presidente [...], da qual discordo absolutamente", emendou o almirante Augusto Rademaker, ministro da Marinha. Era expoente da linha dura na Armada. Militante integralista nos anos 30, membro do comando revolucionário de abril de 1964, tomara dois dias de cadeia durante o mandato de Castello por ter criticado o governo. 3 Ganhara o cargo depois de ter passado dois anos numa escrivaninha de adido ao gabinete do ministro. "O que se tem que fazer é realmente uma repressão", acrescentou. O marujo foi às águas do direito constitucional e argumentou que "o recesso, a meu ver, não requer estado de sítio, por enquanto". Naufrágio, pois pela Constituição ainda vigente o estado de sítio nada tinha a ver com o recesso parlamentar, que nem sequer poderia ser decretado durante sua duração.
Entrou o ministro do Exército, Lyra Tavares: "Nós estamos agora perdendo condições [...] de manter a ordem neste país". 4 E ameaçou: "É preciso assinalar que foi com grande sacrifício que as Forças Armadas, particularmente o Exército, guardaram até aqui, como fato inédito na história política do Brasil, o seu silêncio, à espera de uma solução, e convencidos - todos os quadros - de que não pode deixar de haver essa solução".
Costa e Silva deu a palavra "por ordem de antiguidade" ao chanceler Magalhães Pinto. Pelo cerimonial da República, o ministro da Justiça tem precedência sobre os demais. O presidente pulara Gama e Silva. Magalhães percebeu a astúcia e lamentou que o ministro não tivesse falado antes, explicando sua obra. O chanceler vivia um desconforto biográfico. Em 1943 assinara o Manifesto dos mineiros, primeira manifestação da elite liberal contra a ditadura de Getulio Vargas. Estava pronto para assinar o Ato de Gaminha, mas tentava ganhar tempo. "Eu também confesso, como o vice-presidente da República, que [...] nós estamos instituindo uma ditadura. E acho que se ela é necessária, devemos tomar a responsabilidade de fazê-la. Eu não conheço bem, dentro do mecanismo constitucional [...] se o que resta caracteriza mesmo essa ditadura. Acho que ainda é tempo de alguma coisa ser feita para evitar". 5 Magalhães concluiu que "devemos fazer um ato institucional", "procurando colocar nele o essencial", e sugeriu que seria útil "um debate privado entre aqueles que fizeram o Ato e aqueles que podem dar uma contribuição jurídica [...] porque devemos ter um Ato o mais jurídico possível, e resguardar os direitos do cidadão também o mais possível".
O ministro da Fazenda pisou no acelerador. Antonio Delfim Netto, um menino do Cambuci, ex-contínuo da Gessy, formado na Universidade de São Paulo, lapidado na assessoria da Confederação Nacional da Indústria, ainda era um ministro sem muito destaque, mas viu longe. Queria que a concentração de poderes pedida por Costa e Silva desse ao governo mão livre para legislar sobre matéria econômica e tributária: "Estou plenamente de acordo com a proposição que está sendo analisada no Conselho. E se Vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela não é suficiente. Eu acredito que deveríamos atentar e deveríamos dar a Vossa Excelência a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez".
Seguiu-se o ministro da Agricultura, Ivo Arzua, ex-prefeito de Curitiba. Foi o voto mais longo da reunião. A sua audição sugere que ele foi à reunião acreditando que alguém esperava pelas suas sugestões. É provável que tenha levado um texto, do qual não conseguiu se desvencilhar. Louvou a "magnanimidade" das Forças Armadas por não terem resolvido o caso de Marcio Moreira Alves através de um "desforço pessoal", como ele faria. Agradeceu "a atenção paternal, os sábios conselhos" de Costa e Silva, citou Churchill como "grande monumento da última guerra" e deu sua idéia, para embaraço de vários colegas. Denunciou a Constituição por estar "contra a vontade nacional", atacou os partidos por "falta de substância filosófica" e sugeriu a criação de uma "Nova República", com a dissolução do Congresso e a realização de eleições para uma Constituinte. Foi a nota cômica e constrangedora da tarde. 6
O ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, coronel da reserva projetado na política do Pará em 1964, quando saiu do quartel para assumir o governo do estado, chamou a reunião de "histórica". Pouco antes, estivera com o general Portella, que lhe pedira um apoio "forte e breve”. 7 Assim foi: "Sei que a Vossa Excelência repugna, como a mim e a todos os membros desse Conselho, enveredar pelo caminho da ditadura pura e simples, mas me parece que claramente é esta que está diante de nós. [...] Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência" .8
O general Orlando Geisel, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, foi na mesma linha: "Se não tomarmos neste momento esta medida que está sendo aventada, amanhã vamos apanhar na cara, senhor presidente”. 9
O chefe do SNI, general Medici, que pedira um ato institucional na reunião anterior do Conselho, anunciou que aprovava o texto "com bastante satisfação".
A mais audaciosa proposta veio do chefe do Gabinete Civil, Rondon Pacheco, um mineiro tímido que fizera sua carreira no Congresso à sombra dos veneráveis liberais da UDN. Começou batendo na ferradura. Atacou a sugestão do estado de sítio. Mostrou que a Constituição só permitia a suspensão das imunidades parlamentares, "pelo voto secreto, pelo voto secreto", repetiu, de dois terços da casa a que pertencesse o congressista. Ou seja, o estado de sítio não permitiria a cassação de Marcio Moreira Alves. Rondon declarou-se favorável ao Ato, e Costa e Silva ia passando a palavra ao general Jayme Portella, quando o chefe do Gabinete Civil, surpreendido pela interrupção, pediu para continuar. Bateria também no cravo. Contou que já examinara várias propostas de atos e em todas as ocasiões sugerira "a conveniência política de se estabelecer prazo para o recesso, bem como um prazo também para o Ato Institucional, prazo que poderia ser de um ano". A proposta de Rondon foi a única tentativa real de abrandamento da ditadura.
Quando a palavra foi passada ao ministro Gama e Silva, o presidente chamou-o de "responsável direto pela redação do Ato". Fora deixado por último para descer ao campo de batalha e matar os feridos. Enquanto falava, as sirenes do pátio pareciam enlouquecidas. Ficou "de inteiro acordo" com a proposta de Delfim, a qual concedia poderes constituintes ao presidente, ampliando a profundidade do golpe e dando-lhe um caráter dinâmico que o transformaria em instrumento de permanente revitalização da ditadura. 10 Rebateu a idéia de Rondon, que limitava a vigência do Ato: "A experiência demonstra como foi errado ter fixado prazos no Ato Institucional no. 1. Penso que isto é motivo mais do que suficiente para justificar que este Ato, outorgado como foi, possa até mesmo ser revogado a curto ou a longo prazo [...] mas limitá-lo [...] seria incidirmos no mesmo erro do Ato Institucional no. 1, quando a Revolução se autolimitou".
Costa e Silva fechou a reunião com uma cruel malandragem. Elogiou Aleixo, pediu a Deus "que não me venha convencer amanhã de que ele é que estava certo", mas anunciou ao auditório que o vira confabulando com o vice no início da reunião: "Quero revelar ao Conselho que Sua Excelência, há poucos minutos, em confidência [...] apresentou a sua indiscutível solidariedade às decisões do presidente da República, incorporando-se à sua própria situação. Isso me trouxe um grande conforto. [...] Sua Excelência acabou de me dizer que a sorte dele é a minha sorte".
Acabara o serviço. Por trás do palavrório, a decisão fora produto da vontade de Costa e Silva. O ministério não se dividiu entre a posição de Pedro Aleixo e o projeto de ato, mas entre a audácia de um pelotão de fuzilamento e a cautela dos liberais. O pelotão, articulado por Portella, tinha os ministros militares como porta-vozes, o chefe do SNI como chefe de disciplina e os ministros Gama e Silva, Delfim Netto e Jarbas Passarinho como atiradores de elite. Pedro Aleixo, Magalhães Pinto e Rondon Pacheco tentaram abrandar o golpe, cada um à sua maneira. Nem coordenaram suas ressalvas, nem sugeriram a hipótese de jogar seus cargos no pano verde. Se houve correlação entre as idéias que expressaram e a conduta que assumiram, eles passaram de um regime constitucional a uma ditadura distraídos como quem vai à igreja para um batizado, erra de capela e entra numa missa de corpo presente. Diferiam do pelotão de fuzilamento porque aceitavam a ditadura, enquanto ele a queria.
Quase vinte anos depois, Antonio Delfim Netto levantou o véu que encobriu toda a crise de 1968, bem como a reunião do Laranjeiras:
Naquela época do AI-5 havia muita tensão, mas no fundo era tudo teatro. Havia as passeatas, havia descontentamento militar, mas havia sobretudo teatro. Era um teatro para levar ao Ato. Aquela reunião foi pura encenação. O Costa e Silva de bobo não tinha nada. Ele sabia a posição do Pedro Aleixo e sabia que ela era inócua. Ele era muito esperto. Toda vez que ia fazer uma coisa dura chamava o Pedro Aleixo para se aconselhar e, depois, fazia o que queria. O discurso do Marcito não teve importância nenhuma. O que se preparava era uma ditadura mesmo. Tudo era feito para levar àquilo. 11
  Durante a reunião falou-se dezenove vezes nas virtudes da democracia, e treze vezes pronunciou-se pejorativamente a palavra ditadura. Quando as portas da sala se abriram, era noite. Duraria dez anos e dezoito dias.
Horas mais tarde, Gama e Silva anunciou diante das câmeras de TV o texto do Ato Institucional nº. 5. Pela primeira vez desde 1937 e pela quinta vez na história do Brasil, o Congresso era fechado por tempo indeterminado. 12 O Ato era uma reedição dos conceitos trazidos para o léxico político em 1964. Restabeleciam-se as demissões sumárias, cassações de mandatos, suspensões de direitos políticos. Além disso, suspendiam-se as franquias constitucionais da liberdade de expressão e de reunião. Um artigo permitia que se proibisse ao cidadão o exercício de sua profissão. 13 Outro patrocinava o confisco de bens. Pedro Aleixo queixara-se de que "pouco restava" da Constituição, pois o AI-5 de Gama e Silva ultrapassava de muito a essência ditatorial do AI-1: o que restasse, caso incomodasse, podia ser mudado pelo presidente da República, como ele bem entendesse. Quando o locutor da Agência Nacional terminou de ler o artigo 12 do Ato e se desfez a rede nacional de rádio e televisão, os ministros abraçaram-se. 14
A pior das marcas ditatoriais do Ato, aquela que haveria de ferir toda uma geração de brasileiros, encontrava-se no seu artigo 10: "Fica suspensa a garantia de hábeas corpus nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional". Estava atendida a reivindicação da máquina repressiva. O habeas corpus é um inocente princípio do direito, pelo qual desde o alvorecer do segundo milênio se reconhecia ao indivíduo a capacidade de livrar-se da coação ilegal do Estado. Toda vez que a Justiça concedia o habeas corpus a um suspeito, isso significava apenas que ele era vítima de perseguição inepta, mas desde os primeiros dias de 1964 esse instituto foi visto como um túnel por onde escapavam os inimigos do regime. Três meses depois da edição do AI-5, estabeleceu-se que os encarregados de inquéritos políticos podiam prender quaisquer cidadãos por sessenta dias, dez dos quais em regime de incomunicabilidade. Em termos práticos, esses prazos destinavam-se a favorecer o trabalho dos torturadores. Os dez dias de incomunicabilidade vinham a ser o dobro do tempo que a Coroa portuguesa permitia pelo alvará de 1705.15 Estava montado o cenário para os crimes da ditadura.
Dias depois da edição do AI-5, Rondon Pacheco telefonou ao ex-ministro Carlos Medeiros Silva, autor do texto do AI-1, perguntando-lhe o que tinha achado: "Ora, Rondon, vocês fazem um ato sem prazo e ainda vêm me perguntar o que eu acho?"16.
As emissoras de televisão, as rádios e as redações de jornais foram ocupadas por censores recrutados na polícia e na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. Carlos Lacerda, que quatro anos antes agradecera a Deus a chegada dos tanques, foi levado preso para um quartel, por ordem do general Jayme Portella, para desagrado do comandante do I Exército, Syseno Sarmento, que acabara de encarcerar o ex-presidente Juscelino Kubitschek, capturado quando descia as escadas do teatro Municipal. JK foi levado para uma unidade da Baixada Fluminense, onde o deixaram num alojamento sujo, com privada sem tampo, sofá rasgado e goteira. 17 Seu amigo Hugo Gouthier, ex-embaixador em Roma, honrava um jantar de grã-finos quando foi chamado ao telefone e avisado pela empregada de que a polícia o esperava em casa. Em 1964 escrevera à TV italiana que a derrubada de Jango se destinara a "neutralizar a ação comunista que ameaçava derrubar as instituições brasileiras e atentar contra os valores mais sagrados de nossa tradição cristã e democrática”. 18 Voltou à mesa, terminou a refeição e despediu-se dos amigos. Acabou no quartel da PM da praça da Harmonia, que guardava o padre vice-reitor da PUC. 19 Em Goiânia, onde seria paraninfo de uma turma de estudantes de direito, o advogado Sobral Pinto, que em 1963 denunciara a bolchevização do país e um ano depois estava no DOPS soltando comunistas, foi preso de pijama e chinelos, aos 75 anos.20 Levaram-no para uma cela de quartel.
O governo que começara sinalizando um interesse na volta dos intelectuais e cientistas exilados expulsaria das universidades 66 professores, entre eles Caio Prado Júnior (que não tinha cargo, mas só o título de livre-docente da USP), Fernando Henrique Cardoso (que conquistara a cátedra de Ciência Política poucos meses antes), o sociólogo Florestan Fernandes, a historiadora Maria Yedda Linhares, o físico Jayme Tiomno e o médico Luiz Hildebrando Pereira da Silva, que deixara uma posição no Instituto Pasteur, em Paris, para organizar o Departamento de Parasitologia da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto.

Avançou-se também sobre as novas dissidências. A atriz Marília Pêra, da peça Roda-Viva, foi trancada num mictório de quartel.21 Caetano Veloso e Gilberto Gil, capturados por uma patrulha do Exército em São Paulo, vagaram por unidades militares do Rio. Os dois jovens atrevidos que cantavam "É proibido proibir", vestiam roupas adoidadas e usavam cabelos compridos, tiveram a cabeça raspada, foram confinados em Salvador e exilados para Londres. Na carceragem da Brigada Pára-Quedista, Caetano compôs:
Eu quero ir, minha gente
Eu não sou daqui
Eu não tenho nada
Quero ver Irene rir.22

Em que iria dar isso tudo? Essa era a curiosidade do embaixador americano John Tuthill. Entre as pessoas junto a quem buscou a resposta estava o general Golbery. Fósforo riscado, vivia entre sua cadeira no Tribunal de Contas e a casa de Jacarepaguá. Repetiu o que previra três anos antes. Disse que o regime não estivera ameaçado e que os generais "estão vendo fantasmas". O Ato resultara da inépcia de um governo desorientado, presidido por um homem emotivo que "prefere distrair-se com filmes e conversas despreocupadas com amigos". Chamou Gama e Silva de "maluco" e Lyra Tavares de "oportunista". Duvidou das previsões otimistas que antecipavam a reabertura do Congresso em três meses. Pelo contrário, viriam mais cassações e, provavelmente, atingiriam o Supremo Tribunal Federal. Não acreditava num surto de moderação: "Muita gente tem contas pessoais a ajustar".23
Precisamente um mês depois da edição do AI-5, o coronel João Baptista Figueiredo, ex-chefe da Agência Central do SNI, então no comando do Regimento de Cavalaria de Guarda, em Brasília, sintetizava a situação: "A impressão que tenho é que cada um procura tirar o maior proveito possível do momento porque começam a perceber a quase-impossibilidade de uma saída honrosa para os destinos do país. [...] Os erros da Revolução foram se acumulando e agora só restou ao governo 'partir para a ignorância'".24

Notas de Rodapé
1 Jayme Portella de Mello, A Revolução e o governo Costa e Silva, p. 653. Para a pressão Hernani d’Aguiar, Ato 5, p. 287.
2 Todas as citações de votos dessa reunião baseiam-se na fita da gravação. Existe ainda uma Ata da Quadragésima Terceira Reunião do Conselho de Segurança Nacional, da Secretaria Geral do CSN. Esses dois documentos guardam diferenças. Em alguns casos trata-se de conseqüência da simples revisão dos votos, proferidos de improvisos. Em outros – diversos – as divergências são produto de fraude política. Na fita ouve-se Costa e Silva falar em “governo presumidamente constitucional”. Na Ata lê-se “governo decididamente constitucional”. APGCS/HF.
3 Para a militância integralista, Hélgio Trindade, “O radicalismo militar em 64 e a nova tentação fascista”, em Gláucio Ary Dillon Soares e Maria Celina d’Araujo (orgs.), 21 anos de regime militar, p. 134.
4 O voto do general Lyra Tavares foi severamente alterado na redação da Ata. Em alguns casos isso deveu-se às suas relações hostis com a sintaxe. Em outros houve maquiagem política. Ele começou dizendo que “também devo declarar, de acordo com as palavras do ministro da Marinha, que ouvi com grande e merecido respeito os conceitos de juristas com a responsabilidade de vice-presidente, do dr. Pedro Aleixo”. Revisto, esse preâmbulo obsequioso transformou-se no seguinte: “Eu também desejo me declarar de acordo com as palavras do ministro da Marinha.” APGCS/HF.
5 Na Ata, numa das mais fraudulentas alterações, trocou-se a frase “acho que ainda é tempo de alguma coisa ser feita para evitar” por “acho que é tempo de se fazer alguma coisa para acabar com as crises. [...]”. APGCS/HF.
6 Para o constrangimento, Antonio Delfim Netto, 1988.
7 Depoimento de Jarbas Passarinho, em História do poder, de Alberto Dines, Florestan Fernandes Jr. e Nelma Salomão (orgs.), vol. 1: Militares, Igreja e sociedade civil, p. 338
8 Na Ata lê-se: “Mas, senhor Presidente, ignoro todos os escrúpulos de consciência”. APGCS/HF.
9 Na Ata lê-se: “[...] vamos apanhar na carne”. APOGS/HF.
10 A sugestão de Delfim teve o apoio expresso de dois ministros: Affonso de Albuquerque Lima, do Interior, e Orlando Geisel, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas.
11 Antonio Delfim Netto, agosto de 1986, e maio e novembro de 1988.
12 O Congresso foi fechado por tempo indeterminado em 1823, 1889, 1930 e 1937. Em outubro de 1966, para assegurar a perda do mandato de seis deputados, Castello fechou-o por um mês.
13 Com base nesse dispositivo, mais tarde, os jornalistas Antônio Callado e Leo Guanabara foram proibidos de exercer a profissão. Depois de publicada a punição, Costa e Silva revogou-a.
14 Depoimento do locutor Alberto Curi, encarregado da leitura do Ato. O Globo, 11 de dezembro de 1988.
15 Autos de devassa da Inconfidência Mineira, vol. 2, nota na página 138.
16 Carlos Medeiros Silva, dezembro de 1968. Medeiros foi o redator do texto do Ato institucional propriamente dito. É do jurista Francisco Campos a autoria de preâmbulo.
17 Para o quartel, Josué Montello, Diário do entardecer, p. 165.
18 Correio da Manhã, 18 de abril de 1964.
19 Hugo Gouthier, Presença, p. 207.
20 Para a denúncia da bolchevização, John W.F. Dulles, Carlos Lacerda – A vida de um lutador, vol. 2: 1960-1977, p. 219.
21 Depoimento de Marília Pêra a O Estado de S. Paulo de 11 de dezembro de 1988.
22 Caetano Veloso, Verdade tropical. pp. 347- 409.
23 Telegrama do embaixador John Tuthill ao Departamento de Estado, de 3 de janeiro de 1969. Em O Estado de S. Paulo, 13 de dezembro de 1998. DEEUA.
24 Carta de 13 de janeiro de 1969 do coronel Figueiredo a Heitor Ferreira. APGCS/HF.

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