domingo, 11 de dezembro de 2016

A revolução e eu (Mario Vargas Llosa)

A revolução e eu

Não deixo de sentir que com Fidel se vai um sonho que comoveu minha juventude 

Em 1.º de janeiro de 1959, ao saber que Fulgencio Batista havia fugido de Cuba, saí para comemorar nas ruas de Paris com amigos latino-americanos. A vitória de Fidel Castro e dos barbudos do Movimento 26 de Julho contra a ditadura parecia um ato de absoluta justiça e uma aventura comparável à de Robin Hood. O líder cubano havia prometido uma nova era de liberdade para seu país e para a América Latina; sua transformação dos quartéis da ilha em escolas para os filhos dos camponeses parecia um excelente começo.
Foto: AFP PHOTO / Oficina de Asuntos Historicos del Consejo de Estado
Líder cubano, Fidel Castro (C), e o primeiro-ministro soviético, Nikita Kruchev (D), durante encontro em 1962 o auge da crise entre a União Soviética e os Estados Unidos
Líder cubano, Fidel Castro (C), e o primeiro-ministro soviético, Nikita Kruchev (D), durante encontro em 1962 o auge da crise entre a União Soviética e os Estados Unidos
Fui pela primeira vez a Cuba em novembro de 1962, enviado pela Rádio Televisão Francesa em plena Crise dos Mísseis. O que vi e ouvi na semana que ali passei – os aviões Sabre americanos sobrevoando o Malecón de Havana, os adolescentes que apontavam para eles canhões antiaéreos chamados bocachicas, a gigantesca mobilização popular contra a invasão que parecia iminente, o estribilho dos milicianos – “Nikita, mariquita, lo que se da no se quita” (Nikita, mariquinhas, o que se dá não se tira) protestando nas ruas contra a devolução dos mísseis – redobrou meu entusiasmo e solidariedade com a revolução. 
Entrei numa longa fila para doar sangue. Hilda Gadea, a primeira mulher de Che Guevara, que era peruana, me apresentou a Haydée Santamaría, que dirigia a Casa das Américas. Haydée me incorporou a um comitê de escritores com o qual, na década de 60, me reuni cinco vezes na capital cubana. Ao longo desses dez anos, minhas ilusões com Fidel e a revolução foram se apagando até se converterem em críticas abertas, e em ruptura final quando se deu o “caso Padilla”.
Minha primeira decepção, as primeiras dúvidas (“será que não me enganei?”) ocorreram em meados dos anos 60, quando foram criadas as Umaps – Unidades Militares de Ajuda à Produção –, um eufemismo, pois na verdade eram campos de concentração onde o governo cubano encerrou, juntos, dissidentes e delinquentes comuns e homossexuais. Entre os últimos estavam vários rapazes e moças de um grupo literário e artístico chamado A Ponte, dirigido pelo poeta José Mario, que eu conhecia.
Era uma injustiça flagrante: esses jovens eram todos revolucionários que acreditavam que a revolução levaria a justiça social não apenas aos operários e camponeses, mas também às minorias sexuais discriminadas. Eu, no entanto, vítima ainda da célebre chantagem “não dê armas ao inimigo”, engoli as dúvidas e escrevi uma carta pessoal a Fidel, detalhando minha perplexidade sobre o que vinha ocorrendo. Fidel não respondeu, mas em pouco tempo recebi um convite para um encontro.
Foi a única vez que estive com Fidel Castro; não conversamos, pois ele não era uma pessoa que admitia interlocutores, apenas ouvintes. Mas, com as 12 horas em que o ouvimos, das 8 da noite às 8 da manhã do dia seguinte, nós, os cerca de dez escritores que participaram daquele encontro, ficamos muito impressionados com aquela força da natureza, aquele mito vivo que era o gigante cubano. 
Fidel falava sem parar e sem ouvir. Contava histórias de Sierra Maestra pulando em cima da mesa e fazia enigmas sobre o Che, que estava desaparecido e não se sabia em que lugar das Américas reapareceria, à frente da nova guerrilha. Reconheceu que haviam sido cometidas algumas injustiças pelas Umaps – que seriam corrigidas –, e explicou que era preciso entender as famílias camponesas, cujos filhos, bolsistas nas novas escolas, eram às vezes assediados pelos “enfermitos” (homossexuais). Fiquei impressionado, mas não convencido. A partir de então, ainda que em silêncio, fui percebendo que a realidade estava muito longe do mito que Cuba havia se tornado.

Fidel Castro: o líder da Revolução Cubana

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Padilla. A ruptura veio quando eclodiu o caso do poeta Heberto Padilla, no início de 1970. Padilla era um dos maiores poetas cubanos. Havia deixado a poesia para trabalhar pela revolução, na qual acreditava apaixonadamente. Chegou a ser vice-ministro do Comércio Exterior. Um dia, passou a fazer críticas, muito moderadas, à política cultural do governo. Teve início, então, uma campanha duríssima contra ele em toda a imprensa. Foi preso. Nós, que o conhecíamos e sabíamos de sua lealdade com a revolução, escrevemos uma carta – muito respeitosa – a Fidel, manifestando nossa solidariedade a Padilla.
Então o poeta reapareceu, num ato público na União dos Escritores, confessando ser agente da CIA e nos acusando, os que o haviam defendido, de servir ao imperialismo e trair a revolução, etc. Poucos dias depois assinamos uma carta muito crítica à Revolução Cubana (que eu redigi), pela qual muitos escritores não comunistas, como Jean-Paul Sartre, Susan Sontag, Carlos Fuentes e Alberto Moravia se afastavam da revolução que até então vinham defendendo.
Esse foi um pequeno episódio na história da Revolução Cubana que, para alguns, como eu, significou muito – a revalorização da cultura democrática; a ideia de que as instituições são mais importantes do que as pessoas para que uma sociedade seja livre; que sem eleições, nem jornalismo independente, nem direitos humanos, a ditadura se instala e vai transformando os cidadãos em autômatos e se eterniza no poder até dominar tudo, mergulhando no desânimo e asfixiando os que não fazem parte da nomenclatura privilegiada.
Estaria Cuba melhor agora, depois dos 57 anos em que Fidel Castro esteve no poder? É um país mais pobre que a horrenda sociedade da qual Batista fugiu naquele 31 de dezembro de 1958 e tem o triste privilégio de ser a ditadura mais longa de que já padeceu o continente americano. Os progressos nos campos da educação e da saúde podem ser reais, mas não convenceram o povo cubano em geral – que, em sua imensa maioria, quer fugir para os Estados Unidos mesmo desafiando os tubarões. E o sonho da nomenclatura, agora que já não pode viver das dádivas da falida Venezuela, é que venha o dinheiro dos EUA para salvar a ilha da ruína econômica em que se debate. 
Há tempos a revolução deixou de ser o modelo que foi no início. Só o que resta é o penoso saldo dos milhares de jovens que morreram em todas as montanhas das Américas tentando repetir a façanha dos barbudos do Movimento 26 de Julho. Para que serviu tanto sonho e sacrifício? Para dar força às ditaduras militares e atrasar em várias décadas a modernização e a democratização da América Latina.
Ao eleger o modelo soviético, Fidel Castro se garantiu no poder absoluto por mais de meio século. Mas deixa um país em ruínas e um fracasso social, econômico e cultural que parece ter vacinado contra as utopias sociais a maioria dos latino-americanos que, finalmente, depois de sangrentas revoluções e ferozes repressões, parece estar entendendo que o único progresso verdadeiro é o que faz avançar simultaneamente a liberdade e a justiça, pois sem liberdade o progresso é só um efêmero fogo-fátuo.
Julgamento. Ainda que esteja certo de que a história não absolverá Fidel Castro, não deixo de sentir que com ele se vai um sonho que comoveu minha juventude e a de tantos jovens de minha geração, impacientes e impetuosos, que acreditaram que os fuzis poderiam queimar etapas e trazer mais depressa o céu para a terra. Agora sabemos que isso acontece apenas nos sonhos e nas fantasias da literatura. 
Na árida e crua realidade, o progresso verdadeiro resulta do esforço compartilhado e deve estar sempre atrelado ao avanço da liberdade e dos direitos humanos – sem os quais não é o paraíso, mas o inferno que se instala neste mundo que nos coube. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
*É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA
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