quarta-feira, 8 de julho de 2020

O DUELO (publicado no jornal Saca-Rolha - Edição Nº 12 – 27/08/1977)


O DUELO
(publicado no jornal Saca-Rolha - Edição Nº 12 – 27/08/1977)

Negra e fria noite de um mês que bem poderia ser dezembro ou agosto. Necessidade de chuva, milharal ou plantação de cebola a ressentir. Sei não... Projeto de lua nova, fim de minguante. Qualquer coisa assim, data que não me recordo com precisão. Dias desses - melhor dizendo - noite dessas opacas e omissas, não fosse o encontro que tentarei narrar.
Lá pelas bandas da Cachoeira, vindo de caminhos opostos, seguindo por estradas diferentes, defrontaram-se a "Cultura" e a "Política".
A Cultura de bengala, cansaço visível diante de uma luta inglória. A Política de guarda-chuva em punho, colete e "sobretudo" distribuindo sorrisos e promessas.
Há muito os dois se evitavam. Um por sentir as suas esperanças à porta da miséria, o outro por não ter como se explicar. Como tudo tem seu dia, o inevitável aconteceu.
Enfim a Cultura e a Política cara-a-cara, resmungos e caretas, cuspidelas no chão... Diálogo de envergonhar Camões e Bilac, de fazer inveja a Bocage e ao Quirino. Nome de mãe, ir-e-vir a lugares incomuns tornou-se a tônica da conversação. Não fosse a intervenção do Espião, sempre presente nos locais improváveis, haveria morte.
Aparteando-os e tentando controlá-los, o Espião contou com a pronta colaboração do Sapé, caminhante incansável nas madrugadas em busca de inspiração e sossego.A única saída plausível e aceitável foi marcar um duelo no estilo antigo e clássico.
Consideraram como local mais indicado, a saída da antiga estrada para Ubá, pouco após da gameleira centenária, na primeira curva. Como padrinho de arma a Cultura escolheu o Ateneu Sapeense, a Política a AREG. Para testemunhas convidaram A VOZ DE GUIDOVAL, MARLIÈRE, GUIDOVALENSE, SAPÉ, O APÓSTOLO, JORNAL DE GUIDOVAL, SACA-ROLHA, SAPEENSE, TURUNAS e o ESPIÃO.
Ninguém queria aceitar a responsabilidade de ser o juiz deste evento. Com muito custo, após vasta argumentação o Chopotó concordou, porém com uma ressalva: - Serei o juiz desde que eu possa ficar a uma distância considerável. Não quero perturbar o meu curso pacato, não desejo complicações com a polícia, já que tais "encontros" são proibidos por lei. Aliás, isto muito contribuiu para que o duelo não fosse preparado e badalado pelos arredores, o que ocasionou a ausência de curiosos.
No dia determinado, que não posso precisar, verão ou outono, todos marcaram presença. As testemunhas, os padrinhos de arma e o juiz Chopotó a uma certa distância, como combinado.
A Cultura chegou um pouco mais cedo, a Política atrasou um pouco devido a burocracia. Num clima de suspense e inquietação a Cultura escolheu como arma a "palavra", à política ficou com a "meia-palavra".
O Chopotó deu o sinal de longe, numa época em que a poluição em nome do progresso não o agredia. Contaram-se os passos.Viraram-se ao mesmo instante.
A Cultura mais rápida lançou no ar: “Inútil!
Não afetou e nem tampouco sensibilizou a política. Esta por sua vez, milésimos de segundos depois, antes mesmo que o eco se consumisse (inútil) no vale vociferou: “Fé-da-pu...
Foi o bastante para fulminar a Cultura.
Acorreram-se todos juntos à Cultura. Mas nada havia a fazer. Constataram-se o óbvio e o óbito.
Marcaram o enterro para o dia seguinte. Entretanto na hora de mudar a roupa da Cultura, o seu fiel amigo Saca-Rolha, percebeu leve pulsação. Não divulgou o fato para não causar impacto, alvoroço.
A cultura não estava morta e sim num estado de catalepsia.
De comum acordo o Saca-Rolha e o Espião, sempre sabendo das coisas, resolveram escondê-la em local adequado, para que mais tarde pudesse ser medicada.
No caixão colocaram cinzas e não deixaram que ninguém o abrisse no velório para o último adeus.
A Política e a politicagem fizeram quarto entre lágrimas de e fingimento.
Houve o enterro, sino, choro e missa. Só ninguém sabia, exceto o Saca-Rolha e o Espião, que estavam enterrando as cinzas da ignorância.
Hoje algumas pessoas idealistas andam à procura de médicos e enfermeiros que consigam tirar a Cultura deste estado de catalepsia.
O local onde sucedeu o duelo o povo resolveu denominá-lo de "Curva da Morte".

Verbetes para quem não conhece Guidoval
Quirino - Personagem da vida guidovalense capaz de recitar palavrões que nem o Aurélio conseguiu registrar.

AREG - Nome da iniciativa de se construir um clube social, que não passou de alicerces e estruturas fantasmas.

Chopotó - Rio que banha e adorna a cidade

Ateneu Sapeense - Teatro-lítero-musical que existiu em Guidoval.

Turunas e Sapeense - Clubes carnavalescos antigos.

A Voz de Guidoval, Marlière, Guidovalense, Sapé, O Apóstolo Espião, Saca-Rolha, Jornal de Guidoval - são jornais antigos que já circularam em Guidoval.
(escrito por Ildefonso Dé Vieira)













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