A criançada sabia que no mês de julho, na fazenda do Sô Tão, o fogo
ardia nas fornalhas que faziam borbulhar o caldo da cana para transformá-lo,
primeiro, em melado e, depois, em rapadura, ambos gostosos como nada mais podia
ser.
E sabiam também que antes, podia-se saborear o melado quente com
angu ou inhame cozido, esticar a puxa-puxa, que escorria-lhes fartamente pelo
queixo, por entre os dedos das mãos, terminando por lamber-lhes a blusa e
até a ponta do dedão do pé. Isso e muito
mais era um sonho que durava meses e que se realizava no mês das férias
escolares do meio do ano.
E era para lá que íamos em vários finais de semana seguidos,
enquanto desfrutávamos das férias em
casa nossa avó. Levantávamos cedo, antes
mesmo que o preguiçoso Sol do mês de julho desse as caras em meio à neblina da
manhã que tudo vestia com seu manto branco e espesso.
O caminho que os meninos e a avó percorriam era sinuoso,
empoeirado, cercado de imenso canavial que se transformava em moldura viva da
estrada, e marcado pelos pés dos passarinhos que nele deixavam um bordado indefinido e incapaz
de ser refeito por quem se atrevesse a repeti-los.
E nós, que então já carregávamos na mão os chinelos de borracha ou
os tamancos de madeira, caminhávamos sinuosamente pelo caminho acompanhando as
pegadas dos passarinhos na areia, pulando nos barrancos, levantando o talco
fino e pesado pelo sereno que o envolvia, sentindo o cheiro gostoso do mato
verde molhado pelo orvalho da noite, colhendo
as flores dos maracujás cujas ramas se esticavam nervosas sobre a antiga
cerca de arame farpado já coberto pela ferrugem do tempo, indo esticada aqui,
dando barriga ali, sem saber onde terminar, observando a última estrela da
manhã que já esmaecia, dando lugar ao Sol que ainda se fazia preguiçoso,
deixando transparecer um amarelo quase desmaiado.
A avó conduzia os netos para que não se confundissem nas
encruzilhadas e mudassem o rumo da caminhada.
Ainda de longe, sentia-se o cheiro gostoso da cana já esmagada
pelos enormes dentes da moenda, certamente já transformado na garapa e já
borbulhando nas enormes tachas de cobre que ardiam durante todo o dia sobre as
longas e vermelhas línguas do fogo, estimuladas pelo bagaço da cana moída.
Quando, enfim, lá chegávamos, já estavam na porteira, para nos
receber, os primos da roça, que logo nos abriam os dentes numa risada gostosa
de felicidade por estarmos com eles durante aquele dia. E também os cachorros
que eram muito amigos, pois nos conheciam de vários anos seguidos. Pelo
balançar do rabo de cada um deles sabíamos que nos seguiriam durante todo o
dia, como amigos. Não entrávamos na casa. Deixávamos nossa avó no alpendre
antigo, todo coberto por uma cortina de brincos de princesa e, alegremente ela
era recebida pela irmã Antoninha. E corríamos
para o terreirão da fazenda.
Enquanto as filhas mais velhas cuidavam da arrumação da casa ou já
cuidavam dos preparativos do almoço que prometia ser maravilhoso, brincávamos
com os mais novos. Pulávamos nos montes de bagaço de cana, mexíamos as tachas
borbulhantes de melado, pegávamos os patos e as galinhas que se descuidassem à
nossa frente, brincávamos na água clara e murmurante do riacho que
saborosamente passava a língua na areia que lhe servia de colo, fazendo rolar
os pequeninos seixos, por entre os quais ela deslizava mansamente, bebíamos o
leite quente e espumante que jorrava dos peitos das vacas e que Cavaco ou Xará
ou Raimundo nos servia canecas esmaltadas ou de alumínio, colhíamos maracujá do
mato, dependurados nas ramas, cobras finas enroscadas nos galhos das árvores.
No final da tarde, voltávamos para a cidade. Empoeirados, melados,
cansados, levando na pele o gostoso cheiro da terra e do capim gordura, além
dos bichos de pé que só seriam descobertos mais tarde, quando os dedos
começassem a coçar.
Éramos muito crianças, mas como poucas, completamente felizes.
Aqueles passeios eram umas das pequenas felicidades certas de nossa vida de
criança.
Hoje, a fazenda não existe mais. O gado já não muge no curral. O
engenho esfriou. As chaminés não cospem mais fumaça. A engenhoca enferrujou. O
maracujá murchou. O caminho mudou seu rumo. Os passarinhos não bordam mais a
areia fina com seus minúsculos pezinhos, porque esta foi levada pelo vento.
O canavial que espanava as nuvens do céu e se deixava ficar ao
sabor do vento, foi cortado pela raiz. Os donos da terra se foram e a voz do
“capitão” daquele eldorado se calou. Alguns filhos se mudaram para a cidade
grande. Jovita e Penha também se foram. Da avó, só restam a saudade e as boas
lembranças de um tempo que não volta mais. Os tempos mudaram. O rumo de tudo
mudou e vivemos apenas das boas lembranças porque, hoje, o fogo é morto.
Crônica escrita pela Maria das Graças Santos Carmo inspirada nos
passeios à Fazenda do Sô Tão e da sua Tia Antoninha.
Foi o seu primeiro trabalho publicado pela Editora Litteris - RJ,
numa antologia chamada Escritores de Ouro, em 2002.
Parabéns, prima Gagaça, por nos proporcionar tão boa e nobre emoção recordando os tempos da nossa infância.
(foto tirada da internet)
Nenhum comentário:
Postar um comentário