Marcílio Boaventura Vieira Abritta
Esta história tem uns 50 anos. As minhas histórias, assim como eu, estão ficando velhas. Ocorreu em meados de 1962, ou começo de 63, durante as férias escolares. Não me recordo se chovia dezembros ou fazia frios de julho.
Eu sei é que o “Cine Guidoval", do Severino Occhi, apresentou o show do maior sucesso infantil, à época, no país. O cantor-mirim era o filho mais velho do Tio Lalade e Tia Lili, o primoMarcílio Boaventura Vieira Abritta.
E eu estava lá. Vaidoso, feliz, todo orgulhoso com o sucesso dele, que imitava com perfeição um menino espanhol, ator e cantor conhecido como Joselito. Os filmes emocionavam crianças e adultos no mundo inteiro. Guardo para mim esta noite inesquecível, dessas para ficar dependurada no varal da memória.
Marcílio se apresentava em programas de TVs em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro como o “Joselito brasileiro”.
Não sei detalhes de como foi descoberto o seu talento musical. Sei que a acompanhá-lo a todos os lugares estava o Padre José (?González Raposo?), uma espécie de preceptor, guarda-costas, empresário e guia espiritual.
O missionário Padre José pertencia ao Seminário Claret, da cidade de Rio Claro em São Paulo. Nesteeducandário, Marcílio ingressou em 1961.
Naquele tempo dar instrução aos filhos era um privilégio de ricos. As famílias mais humildes só conseguiam dar estudos aos filhos mandando-os para seminários mantidos por padres ou colégios técnicos subsidiados pelo governo.
Acredito que não foi por vocação do Marcílio ou promessa e devoção dos pais Osveraldo Abritta(Lalade) e Maria Vieira Abritta (Lili) que ele entrou para o seminário. Foi a vontade e a necessidade de aprender, progredir e vencer na vida. Foi um ato de sabedoria e coragem, desprendimento com sofrimento dos seus pais ao se privarem da companhia do primogênito. Nesse seminário Marcílio estudou o ginasial e quase todo colegial.
Revivendo estes fatos, me vem uma boa saudade dos bons momentos que passei em Cataguases. As brincadeiras com os primos Cláudio, Júlio, Fernando e Marcílio. As primas Inês e Isabel, bem mais novas e por serem meninas, brincavam com as suas bonecas. E íamos,moleques, percorrer ruas do Bairro Granjaria, pular córregos, invadir as dependências do Colégio Cataguases, adentrando-no pelo buraco aberto na cerca devassável. Participar das “peladas” no campo de futebol. Penetrar as dependências do colégio, admirar as belezas do projeto de Oscar Niemeyer, jardins de Burle Marx e obras de Portinari.
Um dia, sozinho, com a inconseqüência dos meus oito ou nove anos, perambulando pelas ruas desse bairro me perdi lá pras bandas da Praça de Esporte. Atrevi-me a atravessar a linha férrea, cruzar a Avenida Astolfo Dutra. Depois foi uma proeza para encontrar o caminho de volta. Retornar ao latifúndio dos tios Lalade e Lili , situado entre a Avenida João Inácio Peixoto e Avenida Cel. Artur Cruz. Foi uma manhã de susto e medo, perdido entre ruas arborizadas na terra da Revista Verde e Rosário Fusco.
Numa dessas férias fomos a Cataguarino. No final do século 19, esse pequeno lugarejo acolheu o casal Joseph Abritta e Angela Salerno, avós do Tio Osveraldo. E lá a família multiplicou-se. Hoje temos Abritta eAbrita espalhados por todos os cantos, povoando esse mundaréu.
Ficamos hospedados na casa de um parente do Tio Lalade que possuía um armazém. Um dos comerciantes só andava de camisolão. Sofria de incontinência urinária. Esta imagem inusitada ficou guardada para sempre na minha cabeça.
Adornando uma mesinha na sala havia um pequeno escudo do Flamengo feito de pano, no formato de um coração. Creio que recheado de algodão ou outro material para fazer o enchimento. Era menor que o tamanho de um punho. Na mesma sala enfeitando a parede um estribo, modelo sapato, de bronze.
Assim como o meu pai Zizinho do Marcílio, o Tio Lalade torcia pelo Vasco da Gama desde antes do “Expresso da Vitória”. E permaneceu fiel ao time de coração até a eternidade.
Ao ver o brasão rubro-negro, maior adversário do seu clube, ouriçou-lhe os pelos, mexeu com os seus brios. Tio Lalade teve umaideia, propôs ao sobrinho, nesse caso eu, a seguinte estripulia “vamos esconder o coração do Flamengo dentro desse sapato-estribo”. Topei na hora. Toda criança gosta de um mal feito. E nessa ocasião eu ainda não estava contaminado pelo “flamenguismo”, doença que depois que nos pega, jamais nos abandona.
Colocamos o plano em prática. Tio e sobrinho, cúmplices, sorrateiros, esconderam o emblema do time da Gávea no interior do sapato de bronze. Não sei por quanto tempo ficou sumido o distintivo do MENGO. Sei que a travessura persiste na minha memória.
E nessa Pasárgada encravada ao pé da Serra da Onça, éramos amigos do rei, nesse caso a FamíliaAbritta. E mesmo sob a cerrada vigilância do Padre José, guarda-costas do Marcílio; aprontamos as nossas bagunças. Nadamos no córrego. Apoderamos da quase centenária Igreja do Divino Espírito Santo do Empoçado. Tivemos acesso ao sistema de som. Colocamos na vitrola discos de 78 rpm. Sonorizamos a dorminhoca Cataguarino com melodias e chiados. Na sacristia encontramos uma vasilha repleta de hóstias. Com a autorização eclesial do primo Marcílio comemosmuitas hóstias. Eu que fizera a Primeira Comunhão havia pouco tempo achei, a princípio, uma heresia comer hóstias. Acontece que o argumento do primo mais velho e seminarista continha fundamento. Sem a CONSAGRAÇÃO, a hóstia seria apenas uma massa de pão ázimo. Não pecamos.
Hoje não tem mais a velha igreja. Os doidos, sempre de plantão, desmancharam-na em 1965.
Não sei se antes ou depois desse passeio a Cataguarino, pegamos uma carona no almoço oferecido pelo Monsenhor da Igreja Santa Rita de Cássia ao Padre José e Marcílio. Uma ceia, um banquete.
Em meados da década de 60 fervilhava o mundo musical. Era assim na Meia Pataca do poeta Joaquim Branco e no antigo Sapé de Ubá, na Barbearia do Sô Nilo onde se reunia os bambambãs da música de Guidoval.
Em 1965, os Beatles contagiam com Help de Lennon/McCartney, Roberto Carlos ataca de “Quero que Vá Tudo pro Inferno” e os RollingStones de Mick Jagger eletriza a juventude com "(I Can't Get No)Satisfaction".
Contrapondo-se ao rock'n'roll, no Brasil apelidado de iê-iê-iê ou Jovem Guarda; a Bossa Novaconsagrava-se na trilogia de João Gilberto com (Chega de Saudade - 1959), (O Amor, o Sorriso e a Flor - 1960) e (João Gilberto - 1961). Isto sem contar as canções românticas de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra como Minha namorada e Primavera; além dos disputadíssimos festivais de música da TV Excelsior e Record. Elis Regina interpretando Arrastão, Nara Leão cantando a Banda de Chico Buarque e Jair Rodrigues arrebatando o público com a Disparada de Theo de Barros e Geraldo Vandré.
E caminhando “sem lenço e sem documento” pelas ruas, praças e avenidas na terra dos Peixoto discutíamos as nossas preferências musicais. Os irmãos Fernando e Marcílio fãs ardorosos do rock/iê-iê-iê; eu e o primo Nivaldinho, filho da Tia Zizi e Tio Nivaldo Abritta, defensores da Bossa Nova e da boa Música Popular Brasileira (MPB). Tolas discussões que não levam a nada, como todas as discussões.
Em 1968 eu estudava na Escola Agrícola de Rio Pomba. No dormitório, cada quarto contava com 18 camas, nove de cada lado. A cama ao meu lado era do amigo juiz-forano Mauro Callado. Um dia ele chegou com um violão que passou a morar entre as nossas camas. Notando a minha curiosidade pelo instrumento, ele se dispôs a me ensinar os três primeiros acordes. Com eles tocava todo meu minguado repertório. Todos os acordes feitos no primeiro traste (Lá maior, Ré maior, Mi sétima). Um fiasco.
De novo veraneando por Cataguases, usufruindo da hospitalidade e o carinho da Tia Lili e Tio Lalade, encontro o Marcílio Boaventura dedilhando um violão. Aproveito para lhe revelar que eu estava tentando apreender a tocar este instrumento. E tô tentanto até hoje. O Marcílio tocava num conjunto da cidade, realizava bailes na região. Dominava guitarra e baixo. Em poucos minutos me deu uma aula sobre o braço do violão. Os intervalos das notas, tom, semitom, bemóis e sustenidos. E a tacada de mestre, o acorde feito no primeiro traste, se repetido com pestana, ao longo do braço do violão, ia se modificando como numa escala musical. De repente aprendi um dicionário de acordes. Simples, fantástico, inacreditável. Uma lição para o resto da vida.
Agora me bateu uma dúvida. Não sei se antes ou depois de tocar nesse conjunto musical, o Marcílio teve um programa numa rádio de Cataguases. Formou uma dupla com a cantora Maria Alcina. A duplaMM. Mais tarde a Maria Alcina seguiu uma fugaz carreira solo. Mesmo talentosa, surgiu e evaparou-se no sucesso de “Fio Maravilha”. Coisas da vida!
E no turbilhão da roda-viva cada primo foi para um lado. Eu andei por Rio Pomba, São João del Rei, Lavras e me fixei em BH. O Júlio rumou para o Mato Grosso. O Fernando andou por BH e estabeleceu-seem Juiz de Fora. O Cláudio, inteligente, não saiu da Granjaria. O Nivaldinho “gauchou” lá pras bandas de Rio Grande, próximo ao Chuí. O Marcílio Boaventura andou por Leopoldina e lá trabalhou até aposentar-se no IBGE. Fiel às suas raízes não abandonou Cataguases. Constituiu família, tem filhos. Nas horas de folga, planta taiobas.
Como hoje é dia do aniversário do Marcílio, deixo aqui os meus parabéns, felicidades e votos de muita Saúde, Sorte e Sucesso!
escrito por Ildefonso Dé Vieira
em 11/12/2012
Os primos estão agora se reencontrando nas páginas do facebook.
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