O DUELO
(publicado no jornal Saca-Rolha
- Edição Nº 12 – 27/08/1977)
Negra e fria
noite de um mês que bem poderia ser dezembro ou agosto. Necessidade de chuva,
milharal ou plantação de cebola a ressentir. Sei não... Projeto de lua nova,
fim de minguante. Qualquer coisa assim, data que não me recordo com precisão.
Dias desses - melhor dizendo - noite dessas opacas e omissas, não fosse o
encontro que tentarei narrar.
Lá pelas
bandas da Cachoeira, vindo de caminhos opostos, seguindo por estradas
diferentes, defrontaram-se a "Cultura"
e a "Política".
A Cultura de
bengala, cansaço visível diante de uma luta inglória. A Política de
guarda-chuva em punho, colete e "sobretudo" distribuindo sorrisos e
promessas.
Há muito os
dois se evitavam. Um por sentir as suas esperanças à porta da miséria, o outro
por não ter como se explicar. Como tudo tem seu dia, o inevitável aconteceu.
Enfim a
Cultura e a Política cara-a-cara, resmungos e caretas, cuspidelas no chão...
Diálogo de envergonhar Camões e Bilac, de fazer inveja a Bocage e ao Quirino. Nome de mãe, ir-e-vir a
lugares incomuns tornou-se a tônica da conversação. Não fosse a intervenção do Espião, sempre presente nos locais
improváveis, haveria morte.
Aparteando-os
e tentando controlá-los, o Espião contou com a pronta colaboração do Sapé, caminhante incansável nas
madrugadas em busca de inspiração e sossego.A única saída plausível e aceitável
foi marcar um duelo no estilo antigo e clássico.
Consideraram
como local mais indicado, a saída da antiga estrada para Ubá, pouco após da
gameleira centenária, na primeira curva. Como padrinho de arma a Cultura
escolheu o Ateneu Sapeense, a
Política a AREG. Para testemunhas
convidaram A VOZ DE GUIDOVAL, MARLIÈRE, GUIDOVALENSE, SAPÉ, O APÓSTOLO, JORNAL DE GUIDOVAL, SACA-ROLHA,
SAPEENSE, TURUNAS e o ESPIÃO.
Ninguém queria
aceitar a responsabilidade de ser o juiz deste evento. Com muito custo, após
vasta argumentação o Chopotó
concordou, porém com uma ressalva: - Serei o juiz desde que eu possa ficar a
uma distância considerável. Não quero perturbar o meu curso pacato, não desejo
complicações com a polícia, já que tais "encontros" são proibidos por
lei. Aliás, isto muito contribuiu para que o duelo não fosse preparado e
badalado pelos arredores, o que ocasionou a ausência de curiosos.
No dia
determinado, que não posso precisar, verão ou outono, todos marcaram presença.
As testemunhas, os padrinhos de arma e o juiz Chopotó a uma certa distância,
como combinado.
A Cultura
chegou um pouco mais cedo, a Política atrasou um pouco devido a burocracia. Num
clima de suspense e inquietação a Cultura escolheu como arma a "palavra", à política ficou com a
"meia-palavra".
O Chopotó deu
o sinal de longe, numa época em que a poluição em nome do progresso não o
agredia. Contaram-se os passos.Viraram-se ao mesmo instante.
A Cultura mais
rápida lançou no ar: “Inútil!”
Não afetou e nem tampouco
sensibilizou a política. Esta por sua vez, milésimos de segundos depois, antes
mesmo que o eco se consumisse (inútil) no vale vociferou: “Fé-da-pu...”
Foi o bastante para fulminar a
Cultura.
Acorreram-se
todos juntos à Cultura. Mas nada havia a fazer. Constataram-se o óbvio e o
óbito.
Marcaram o enterro para o dia
seguinte. Entretanto na hora de mudar a roupa da Cultura, o seu fiel amigo
Saca-Rolha, percebeu leve pulsação. Não divulgou o fato para não causar
impacto, alvoroço.
A cultura não estava morta e sim
num estado de catalepsia.
De comum
acordo o Saca-Rolha e o Espião, sempre sabendo das coisas, resolveram
escondê-la em local adequado, para que mais tarde pudesse ser medicada.
No caixão
colocaram cinzas e não deixaram que ninguém o abrisse no velório para o último
adeus.
A Política e a politicagem
fizeram quarto entre lágrimas de e fingimento.
Houve o
enterro, sino, choro e missa. Só ninguém sabia, exceto o Saca-Rolha e o Espião,
que estavam enterrando as cinzas da
ignorância.
Hoje algumas
pessoas idealistas andam à procura de médicos e enfermeiros que consigam tirar
a Cultura deste estado de catalepsia.
O local onde
sucedeu o duelo o povo resolveu denominá-lo de "Curva da Morte".
Verbetes para quem não conhece Guidoval
Quirino - Personagem da vida
guidovalense capaz de recitar palavrões que nem o Aurélio conseguiu registrar.
AREG - Nome da iniciativa de se construir um clube social, que não
passou de alicerces e estruturas fantasmas.
Chopotó - Rio que banha e adorna a cidade
Ateneu Sapeense - Teatro-lítero-musical que existiu em Guidoval.
Turunas e Sapeense -
Clubes carnavalescos antigos.
A Voz de Guidoval, Marlière,
Guidovalense, Sapé, O Apóstolo Espião, Saca-Rolha, Jornal de Guidoval - são jornais antigos que já
circularam em Guidoval.
(escrito por Ildefonso Dé Vieira)