Senhoras prefeitas, Senhores prefeitos...
(Rubem Alves)
Senhoras prefeitas, senhores
prefeitos: eu não sou político. Nada entendo de administração. Não tenho
conselhos técnicos a oferecer. Mas, ainda assim, ouso pedir que me leiam. O
texto é curto. Não vai tomar muito o seu tempo. Ignorem minhas incompetências.
Se o que vou dizer fizer sentido, ficarei feliz. Se não fizer sentido, é só
esquecê-lo.
Jay W. Forrester, professor de
administração do MIT, enunciou a seguinte lei das organizações: “Em situações complicadas, esforços para
melhorar as coisas frequentemente tendem a torná-las piores, algumas vezes
muito piores e, ocasionalmente, calamitosas”.
Essa mesma lei foi enunciada há
quase dois mil anos de forma mais simples e poética, que todos podem compreender:
“Não se costura remendo de tecido novo em roupa podre. Porque
o remendo de tecido novo rasga o tecido podre, e o buraco fica maior do que
antes” (Mateus 9,16).
As senhoras e os senhores estão
diante de uma situação complicada. O
impulso administrativo é fazer as coisas para melhorá-la. A roupa que têm nas
mãos está podre e esburacada. O impulso administrativo é costurar remendos de
pano novo no tecido podre. Forrester e Jesus profetizam: “Não vai dar certo”.
O livro sagrado do taoismo, o Tao Te Ching, diz que estamos
constantemente divididos: de um lado, a tentação de dez mil coisas que demandam
ação. Todas não essenciais. Do outro lado, está uma única coisa: o essencial,
raiz das dez mil perturbações. Sabedoria é deixar o sufoco das dez mil coisas
não essenciais e focalizar os olhos na única coisa que é essencial.
Pergunto: estão enrolados pelas dez
mil coisas não essenciais que demandam ações ou já conseguiram focar os olhos no coração do bicho de onde
nascem as dez mil coisas?
Faz algum tempo, escrevi um artigo
com o título “Sobre política e jardinagem”. Gosto de jardins, gosto de
jardinagem. Os jardins são o mais antigo sonho da humanidade. As sagradas
escrituras contam que Deus se cansou dos seus infinitos espaços celestiais e
começou a sonhar. Qual foi o seu sonho? Um jardim: paraíso. E achou o jardim
tão melhor que o seu céu anterior que resolveu mudar de casa: passou a morar no
jardim e gostava de caminhar por ele quando a brisa da tarde era fresca.
Uma das necessidades mais profundas
do corpo é o espaço. O corpo precisa do seu espaço. Por isso os lobos e os cães
urinam em certos
lugares. A urina é a cerca que usam para marcar o seu espaço.
Os pássaros marcam o seu espaço cantando. Esse espaço é parte do corpo. Quando
ele é invadido por um estranho, o corpo estremece: ou com a fúria que leva à
luta ou com o medo que faz fugir. Diferentemente dos lobos, cães e pássaros,
não urinamos ou cantamos para marcar o nosso espaço. Criamos símbolos. Para os
homens o símbolo que marca o seu espaço-corpo é o jardim. Quando esse espaço é
destruído, a vida social é destruída também.
“Paraíso”
– jardim – é uma palavra que deriva do grego paradeisos, que, por sua vez, vem do antigo pérsico paridaeza, que quer dizer “espaço fechado”. Jardim é um espaço fechado.
Porque fechado? Para ser protegido. Para que seja nosso. Fora dos muros que
fecham o jardim está o espaço selvagem, ainda não moldado pelo desejo de vida e
beleza que mora nos seres humanos. Política é a arte de criar esse espaço.
Política é a arte de jardinagem aplicada ao espaço público. Deixando de lado as
dez mil coisas a serem feitas, digo que a missão das prefeitas e dos prefeitos
é criar esse espaço necessário para que a vida e a convivência humana possam
acontecer. Tudo o mais é acessório.
Como se cria esse espaço? A resposta
mais obvia é: fazendo as dez mil tarefas administrativas que a criação de um
jardim exige. Perguntei, num dos meus artigos: o que vem primeiro: O jardim ou
o jardineiro? É o jardineiro. O que é um
jardineiro? É alguém que sonha com um
jardim antes que o jardim exista. Um jardim, assim, não começa com dez mil
atos. Começa com um único sonho. O jardim começa na cabeça das pessoas. Começa
com o pensamento. Se o povo não sonhar com jardins, os jardins não serão
criados. E os que porventura existem logo se transformarão em lixo. Não há
jardim que resista aos predadores. Predadores dos jardins são os seres humanos
que não pensam em jardins.
Digo, portanto, que a tarefa mais
alta das prefeitas e dos prefeitos não são os dez mil atos administrativos e as
inaugurações que se lhes seguem. Sua missão mais importante é seduzir os
habitantes das cidades a amar os jardins, a pensar nos jardins. Por favor me
entendam: uso a palavra jardim como metáfora para o espaço da cidade, que deve
ser uma extensão do corpo das pessoas. Se as pessoas não sentirem que o espaço
da cidade é uma extensão do seu corpo, então ele não será um jardim, espaço
protegido. Será o espaço selvagem de onde se deve fugir. E cada qual se
esconderá atrás dos muros, atrás das grades, atrás dos cães, e viverá no espaço
pequeno do seu medíocre apartamento, do seu medíocre condomínio, das suas
medíocres mansões. E a cidade será um espaço morto, entregue à fúria dos carros
e à violência das feras...
As senhoras e os senhores prefeitos
já pensaram que, mais importante que as dez mil coisas administrativas que
podem ser feitas, a sua tarefa essencial é fazer o povo pensar? Que o essencial
é educar? O Diabo sugeriu que Jesus tomasse providências práticas imediatas
para resolver o problema. Jesus respondeu que o que realmente importava era a
palavra.
Sonho que se sonha só
È só um sonho que se sonha só.
Mas sonho que se sonha junto é realidade.
(“Prelúdio”, Raul Seixas)
É preciso que o espaço-jardim da cidade exista primeiro na cabeça
das pessoas, para então se tornar realidade. Isso é essencial.
RUBEM ALVES –
Pensamentos
● “Vocação”, do
latim vocare, quer dizer “chamado”.
● Vocação é
diferente de profissão. Na vocação a pessoa encontra a felicidade na própria
ação. Na profissão o prazer se encontra não na ação. O prazer está no ganho que
dela deriva.
● Todas as vocações
podem ser transformadas em profissões.
● A política, dentre
as vocações, é a mais nobre.
A política, dentre as profissões, é a mais
vil.
● O escritor tem
amor, mas não tem poder. Mas o político tem. Um político por vocação é um poeta
forte: ele tem o poder de transformar poemas sobre jardins em jardins de
verdade. A vocação política é transformar sonhos em realidade.
● Quem pensa em
minutos não tem paciência para plantar árvores.
● Votos e eleições
dão a impressão de democracia...
Votos e eleições são apenas meios –
necessários, mas não suficientes - para que a democracia aconteça. Aqui se
encontram a delicadeza e a fragilidade da democracia: para que ela se realize,
é preciso que o povo saiba prensar. Se o povo não souber pensar, votos e
eleições não a produzirão.