Se Essa Rua Fosse Minha...
(à minha neta Júlia, fonte de minha inspiração)
(escrito pelo poeta José Francisco Barbosa)
Ao ver minha neta ninando sua boneca com a cantiga acima,
por alguns instantes, meus pensamentos vagaram. A caixa filmadora e gravadora
de meu cérebro rodaram rapidamente à minha frente. Assisti ao filme. Eu era
espectador e protagonista. Não há cortes. Era julho. Esquina do Sr. Dionísio
empoeirada. Um mastro com a imagem de Nossa Senhora Sant’Ana tremulando no
alto. Uma fogueira recheada com algumas batatas doces. Alguns esperando que da
fogueira restem apenas brasas para pisá-las com os pés nus, numa demonstração
de sua fé.
O comando do Benedito no mais autêntico congado. Gorros
enfeitados de espelhos redondos, espadas reluzentes ao clarão do fogo.
Encostado à parede da casa do Dr. Mário, uma barraca com
chocolate, quentão e canjica. No bar do Caputo, alguém pede "mais
uma". Desço um pouco pelo Fundão. Paro num salão de piso de tábuas
corridas, onde o perfume indefinível faz parte de mim, assim como é o cheiro de
minha carteira do Grupo Escolar Mariana de Paiva, friccionada pela borracha de
apagar. Não sai.
Neste salão, admiro um velho, cuja cabeça me parecia uma
pluma suave, valorizada por um sorriso aberto e umas mãos mágicas rodeado de
uma platéia. Que platéia! Cada um patrocinava um convidado. Terezinha Reis, Sô
Odilon, Zé do Gil, Bigica, Márcio Barbosa, Sô Lau, Landim, Mundico, Manga Rosa,
Renatinho, Bebeto e tantos outros, que como ninguém, valorizavam o deslizar dos
dedos de um artista nas cordas de um violão, de um violino ou de um banjo com
suas vozes suaves e encantadoras. Saudades de vocês, Sô Nilo, Sô Odilon... E o
filme desce um pouco mais pelo Fundão quando vejo uma placa "Cartório de
Paz". Sinto-me envolvido no calor do ventre materno. Que delícia! Foi ali,
lá em cima, onde respirei o primeiro ar com meus pulmões. Vovó Elisa, ainda
sinto o deslizar de suas mãos abençoadas em meu corpo. O filme e o tempo passam
neste lugar. As brincadeiras com o Babá (onde você está?), o cheiro deixado
pelos primeiros baldes de água jogados na rua pelo Jésus Ribeiro para eliminar
a poeira, as noites bem disputadas de buraco com Sr. Sebastião Vieira, as
nossas confidências, Élvia. O tio Nely a me colocar dentro de um pneu dando-me
aquele impulso Fundão abaixo... Que maravilha.
Ainda é julho e bem lá embaixo no Fundão, ouço uma música de
quadrilha e a voz cadente, encantadora, entremeada de boas expressões em
francês, marcando a quadrilha. Seu Antônio Queiroz, como isto me marcou! Quanto
ciúme me causava o "cada um com seu par" de meu primeiro amor (ela
não sabia).
De repente, sinto um cheiro gostoso de remédio manipulado.
Lá de dentro, surge um homem alto, mãos limpas, conversa agradável, conhecimento
de tudo. Era nossa consulta. Era nossa enciclopédia. Seu Trajano, onde está
aquele banquinho?
Eu adormeci. Fiquei a vaguear. Sonhei. Defrontei-me com o
"Espírito Perfeitíssimo, Eterno, Criador do Céu e da Terra" que você,
Tia Sinhá, havia me apresentado aqui e que aprendi a amar.
Repetidas vezes, minha neta cantava: "se essa rua, se
essa rua fosse minha / eu mandava, eu mandava ladrilhar / com pedrinhas, com
pedrinhas de brilhantes / para o meu, para o meu amor passar".
Acordei lentamente. Nos lábios eu tinha uma expressão de
felicidade.
No travesseiro, encontrei umidade. Meus olhos merejavam.