O amigo e conterrâneo Dr. Plínio Augusto de Meireles, autor da melodia do Hino
de Guidoval, sempre me abastece com dicas e boas informações.
Junto com o comentário, o Dr. Plínio ele anexou uma bela mensagem
do Rubem Alves (A Chegada e a Despedia), que transcrevo a seguir:
Muito lindo o texto do José Maria. Lembra da sua mãe com
serenidade, carinho,
boas recordações e sem desespero.
No meu modo de ver e, talvez, do Rubem Alves, lembra dela como
deve ser.
Também me lembro dos meus pais com saudade e alegria por tê-los
tido como pais.
Porém, a maioria de nós não está preparada para as partidas deste
mundo e desta vida. Falta de preparo, de conhecimento, egoísmo?...
Não sei. Fato é que ninguém ficará por aqui eternamente.
Quando e como partiremos, ninguém consegue saber por
antecedência.
A propósito disto pessoas ilustres disseram algo. Shakespeare, no
seu monólogo "O Menestrel", disse que "As pessoas que amamos à
vezes nos são levadas mais cedo do que possamos imaginar.
Por isto, sempre devemos nos despedir das pessoas que amamos com
palavras carinhosas. Pode ser a última vez..."
Rubem Alves escreveu uma crônica intitulada "A Chegada e a
partida" onde trata do tema partida com muita clareza e serenidade.
Na verdade todos nós temos o nosso tempo e, como disse
recentemente o Papa Francisco, quando inquirido se teve medo quando esteve no
seu carro com os vidros abertos num engarrafamento no Rio de Janeiro, respondeu
que "ninguém morre de véspera".
Assim, acredito seja interessante pensarmos nesse tema "a partida"
com a devida serenidade para que não soframos tanto quando ocorrer algum caso
junto de nós.
Plínio Augusto de
Meireles
A
CHEGADA E A DESPEDIDA
RUBEM ALVES
Em Minas, em agradecimento a uma esmola que lhes tivesse sido dada por
uma grávida, as mendigas a benziam com a saudação: ”Nossa Senhora do Bom Parto
que lhe dê boa hora!”. Benzeção confortante porque a hora da grávida
é hora de dor e angústia, precisando da proteção da Virgem Parteira. Vendo,
ninguém acreditaria que um nenenzinho pudesse passar por canal tão apertado.
Dor para a mãe, angústia para o nenê.
No lugar onde as palavras nascem elas
brilham com uma clareza espantosa. Vou ao nascedouro da palavra angústia: nasceu do verbo angere, que
significa apertar, sufocar. Assim, no seu nascedouro, angústia quer dizer estreiteza. O nenenzinho, que estava
numa boa, vai ser apertado e sufocado dentro de um canal. Vai sentir angústia.
E, pelo resto de sua vida, sempre que tiver de passar por um canal apertado e
escuro, vai sentir de novo o que sentiu para nascer. Angústia e dor misturadas
assim – não admira que as mendigas invocassem a Virgem...
A medicina, descrente de Virgens e
benzeções de mendigas, não conseguiu se livrar das angústias e dores das
grávidas, e tratou de arranjar alguém que fizesse as vezes da Virgem para
cuidar delas quando chegasse a hora. Criou uma especialidade alegre, a mais
antiga de todas: a obstetrícia. Obstetrix, em latim, quer dizer parteira. Uma tradução mais literal da palavra
seria “aquela que está diante”. A parteira está diante da mãe. Diante da mãe
ela aguarda o nenenzinho. Sua função é ajudar a vida a atravessar a apertada e
angustiante passagem que leva do escuro da barriga da mãe à luz do mundo aqui de
fora: “dar à luz”. Que fantasias terríveis devem passar pela cabeça da
criancinha ao se sentir espremida, deslocada, empurrada, arrancada, apertada! É
possível que ela sinta que vai morrer. Mas, ao final do canal apertado, a obstetrix a acolhe, como se fosse a mãe... É ela, a
parteira, a primeira experiência do mundo que a criancinha tem, a Virgem
bendita.
A vida começa com uma chegada. Termina
com uma despedida. A chegada faz parte da vida. A despedida faz parte da vida.
Como o dia, que começa com a madrugada e termina com o sol que se põe. A madrugada é alegre, luzes e cores que
chegam. O sol que se põe é triste, orgasmo final de luzes e cores que se vão.
Madrugada e crepúsculo, alegria e tristeza, chegada e despedida: tudo é parte
da vida, tudo precisa ser cuidado. A gente se prepara, com carinho e alegria, a
chegada de quem ama. É preciso preparar também, com carinho e tristeza, a
despedida de quem a gente ama.
Os orientais sabem mais sobre isso do
que nós. Sabem que os opostos não são inimigos: são irmãos. Noite e dia,
silêncio e música, repouso e movimento, riso e choro, calor e frio, sol e
chuva, abraço e separação, Chegada e partida: são os opostos pulsantes que dão
vida à vida. Vida e morte não são inimigas. São irmãs. Chegada e despedida...
Sem a frase que encerra a canção não existiria. Sem a morte, a vida também não
existiria, pois a vida é, precisamente, uma permanente despedida...
A medicina criou a obstetrícia como uma
especialidade cuja missão é “estar diante” da vida da vida que está chegando.
Acho que ela, por amor aos homens, deveria também criar uma especialidade
simétrica à obstetrícia, cuja missão seria “estar diante” daqueles que estão
morrendo. A morte também está cheia de medos, de dor. A morte é também um
angustiante canal apertado e escuro. É solidão. O nenenzinho, na passagem
escura e apertada, está totalmente sozinho e abandonado. Aquele que está
morrendo também está absolutamente sozinho e abandonado. Aqueles que o amam e o
cercam estão longe, muito longe: as mãos dadas não transpõem o abismo. A morte
é sempre um mergulho no abandono.
Pensei nessa especialidade... Pois a
missão da medicina não é cuidar dada vida? Pois a despedida também parte da
vida. Os que estão partindo ainda estão
vivendo... Eles precisão de tantos cuidados quanto aqueles que estão nascendo.
E até inventei um nome para tal especialidade. Combinei duas palavras: Moriens, entis, do latim, que quer
dizer: “que está morrendo”; e therapeuein,
do grego, que quer dizer “cuidar, servir, curar”. Saiu, então, morienterapia, os cuidados com aqueles
que estão morrendo. E o morienterapeuta
seria aquele que, à semelhança do obstetra, se encontra “diante” daquele que
está se despedindo. Nossa Senhora do Bom Parto é a padroeira das parturientes.
Procurei uma outra Nossa Senhora para ser a padroeira dos que estão morrendo.
Eu a descobri na Pietà: aquela que
acolhe no seu colo o filho que está morrendo. Morrer nos braços da Pietà é, talvez, sentir-se finalmente
voltando para o colo de uma mãe que nunca se teve mas que sempre se desejou
ter. Talvez, no colo da Pietà, a
despedida poderia ser vivida, então, como um retorno ao colo materno.
Alguns me dirão que tal especialidade
já existe: os intensivistas são
“aqueles que estão diante” daqueles que estão morrendo. Quem diz isso não me
entendeu. A missão dos intensivistas é o oposto do que estou dizendo. A missão
deles é a de impedir a despedida, a qualquer custo. Por isso eles são pessoas
agitadas. A qualquer momento pode haver uma parada cardíaca – e se eles não
correrem e não forem competentes, a partida acontecerá. Cada partida é uma
derrota. O morienterapeuta, ao
contrário, entra em cena quando as esperanças se foram. A despedida é certa.
Ele ou ela tem de estar em paz com a vida e a morte, tem de saber que a morte é
parte da vida: precisa ser cuidada. Por isso, o morienterapeuta terá de ser alguém tranqüilo, em paz com o fim, com
o fim dos outros de quem ele cuida, em paz com seu próprio fim, quando outros
cuidarão dele. Dele não se esperam nem milagres, nem recursos heróicos para
obrigar o débil coração a bater por mais um dia. Dele se esperam apenas os
cuidados com o corpo – é preciso que a despedida seja mansa e sem dor -- e os cuidados com a alma – ele não tem medo
de falar sobre a morte.
Sei que isso deixa os médicos embaraçados.
Aprenderam que sua missão é lutar contra a morte. Esgotados os seus recursos,
eles saem da arena, derrotados e impotentes. Pena. Se eles soubessem que sua
missão é cuidar da vida, e que a morte, tanto quanto o nascimento, é parte da
vida, eles ficariam até o fim. E assim, ficariam um pouco mais sábios. E até –
imagino – começariam a escrever poesia...