quinta-feira, 18 de abril de 2013

Senhoras prefeitas, Senhores prefeitos... (Rubem Alves)



Senhoras prefeitas, Senhores prefeitos...

(Rubem Alves)


            Senhoras prefeitas, senhores prefeitos: eu não sou político. Nada entendo de administração. Não tenho conselhos técnicos a oferecer. Mas, ainda assim, ouso pedir que me leiam. O texto é curto. Não vai tomar muito o seu tempo. Ignorem minhas incompetências. Se o que vou dizer fizer sentido, ficarei feliz. Se não fizer sentido, é só esquecê-lo.
            Jay W. Forrester, professor de administração do MIT, enunciou a seguinte lei das organizações: “Em situações complicadas, esforços para melhorar as coisas frequentemente tendem a torná-las piores, algumas vezes muito piores e, ocasionalmente, calamitosas”.
            Essa mesma lei foi enunciada há quase dois mil anos de forma mais simples e poética, que todos podem compreender: “Não se costura remendo de tecido novo em roupa podre. Porque o remendo de tecido novo rasga o tecido podre, e o buraco fica maior do que antes” (Mateus 9,16).
            As senhoras e os senhores estão diante de uma situação complicada.  O impulso administrativo é fazer as coisas para melhorá-la. A roupa que têm nas mãos está podre e esburacada. O impulso administrativo é costurar remendos de pano novo no tecido podre. Forrester e Jesus profetizam: “Não vai dar certo”.
            O livro sagrado do taoismo, o Tao Te Ching, diz que estamos constantemente divididos: de um lado, a tentação de dez mil coisas que demandam ação. Todas não essenciais. Do outro lado, está uma única coisa: o essencial, raiz das dez mil perturbações. Sabedoria é deixar o sufoco das dez mil coisas não essenciais e focalizar os olhos na única coisa que é essencial.
            Pergunto: estão enrolados pelas dez mil coisas não essenciais que demandam ações ou já conseguiram  focar os olhos no coração do bicho de onde nascem as dez mil coisas?
            Faz algum tempo, escrevi um artigo com o título “Sobre política e jardinagem”. Gosto de jardins, gosto de jardinagem. Os jardins são o mais antigo sonho da humanidade. As sagradas escrituras contam que Deus se cansou dos seus infinitos espaços celestiais e começou a sonhar. Qual foi o seu sonho? Um jardim: paraíso. E achou o jardim tão melhor que o seu céu anterior que resolveu mudar de casa: passou a morar no jardim e gostava de caminhar por ele quando a brisa da tarde era fresca.
            Uma das necessidades mais profundas do corpo é o espaço. O corpo precisa do seu espaço. Por isso os lobos e os cães urinam em certos lugares. A urina é a cerca que usam para marcar o seu espaço. Os pássaros marcam o seu espaço cantando. Esse espaço é parte do corpo. Quando ele é invadido por um estranho, o corpo estremece: ou com a fúria que leva à luta ou com o medo que faz fugir. Diferentemente dos lobos, cães e pássaros, não urinamos ou cantamos para marcar o nosso espaço. Criamos símbolos. Para os homens o símbolo que marca o seu espaço-corpo é o jardim. Quando esse espaço é destruído, a vida social é destruída também.
            Paraíso” – jardim – é uma palavra que deriva do grego paradeisos, que, por sua vez, vem do antigo pérsico paridaeza, que quer dizer “espaço fechado”. Jardim é um espaço fechado. Porque fechado? Para ser protegido. Para que seja nosso. Fora dos muros que fecham o jardim está o espaço selvagem, ainda não moldado pelo desejo de vida e beleza que mora nos seres humanos. Política é a arte de criar esse espaço. Política é a arte de jardinagem aplicada ao espaço público. Deixando de lado as dez mil coisas a serem feitas, digo que a missão das prefeitas e dos prefeitos é criar esse espaço necessário para que a vida e a convivência humana possam acontecer. Tudo o mais é acessório.
            Como se cria esse espaço? A resposta mais obvia é: fazendo as dez mil tarefas administrativas que a criação de um jardim exige. Perguntei, num dos meus artigos: o que vem primeiro: O jardim ou o jardineiro?  É o jardineiro. O que é um jardineiro?  É alguém que sonha com um jardim antes que o jardim exista. Um jardim, assim, não começa com dez mil atos. Começa com um único sonho. O jardim começa na cabeça das pessoas. Começa com o pensamento. Se o povo não sonhar com jardins, os jardins não serão criados. E os que porventura existem logo se transformarão em lixo. Não há jardim que resista aos predadores. Predadores dos jardins são os seres humanos que não pensam em jardins.
            Digo, portanto, que a tarefa mais alta das prefeitas e dos prefeitos não são os dez mil atos administrativos e as inaugurações que se lhes seguem. Sua missão mais importante é seduzir os habitantes das cidades a amar os jardins, a pensar nos jardins. Por favor me entendam: uso a palavra jardim como metáfora para o espaço da cidade, que deve ser uma extensão do corpo das pessoas. Se as pessoas não sentirem que o espaço da cidade é uma extensão do seu corpo, então ele não será um jardim, espaço protegido. Será o espaço selvagem de onde se deve fugir. E cada qual se esconderá atrás dos muros, atrás das grades, atrás dos cães, e viverá no espaço pequeno do seu medíocre apartamento, do seu medíocre condomínio, das suas medíocres mansões. E a cidade será um espaço morto, entregue à fúria dos carros e à violência das feras...
            As senhoras e os senhores prefeitos já pensaram que, mais importante que as dez mil coisas administrativas que podem ser feitas, a sua tarefa essencial é fazer o povo pensar? Que o essencial é educar? O Diabo sugeriu que Jesus tomasse providências práticas imediatas para resolver o problema. Jesus respondeu que o que realmente importava era a palavra.

Sonho que se sonha só
È só um sonho que se sonha só.
Mas sonho que se sonha junto é realidade.
(“Prelúdio”, Raul Seixas)
É preciso que o espaço-jardim da cidade exista primeiro na cabeça das pessoas, para então se tornar realidade. Isso é essencial.

RUBEM ALVES – Pensamentos
● “Vocação”, do latim vocare, quer dizer “chamado”.
● Vocação é diferente de profissão. Na vocação a pessoa encontra a felicidade na própria ação. Na profissão o prazer se encontra não na ação. O prazer está no ganho que dela deriva.
● Todas as vocações podem ser transformadas em profissões.
● A política, dentre as vocações, é a mais nobre.
  A política, dentre as profissões, é a mais vil.
● O escritor tem amor, mas não tem poder. Mas o político tem. Um político por vocação é um poeta forte: ele tem o poder de transformar poemas sobre jardins em jardins de verdade. A vocação política é transformar sonhos em realidade.
● Quem pensa em minutos não tem paciência para plantar árvores.
● Votos e eleições dão a impressão de democracia...
  Votos e eleições são apenas meios – necessários, mas não suficientes - para que a democracia aconteça. Aqui se encontram a delicadeza e a fragilidade da democracia: para que ela se realize, é preciso que o povo saiba prensar. Se o povo não souber pensar, votos e eleições não a produzirão.

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