segunda-feira, 17 de outubro de 2016

UMA FACA, UMA LEMBRANÇA... De Joãozinho Queiroz (texto do Dr. Plínio Augusto de Meireles)

UMA FACA, UMA LEMBRANÇA...
        De Joãozinho Queiroz

É interessante o como um objeto qualquer pode nos remeter a memórias e a pessoas que até já se foram para outros planos espirituais! É assim mesmo, tal como boas ações e ajudas recebidas e não necessariamente uma joia de alto valor financeiro.
Eu, particularmente, tenho alguns objetos e utensílios que me remetem àqueles que me presentearam.
Por exemplo, entre alguns outros, uma lixeirinha confeccionada em arame grosso, apropriada para a reutilização de sacos de supermercado. É só pisar em uma alça de sustentação abaixo e a parte superior do saco se abre como a boca de um sapo. Soltando, fecha-se imediatamente. 






                                     A lixeirinha

Foi-me presenteada pela tia Dilza, casada com o Tio Menote, que mora em Belo Horizonte. É de grande utilidade e me faz lembrar da pessoa que me presenteou. E como a utilizo várias vezes num mesmo dia e diariamente, sempre me remete à lembrança da pessoa.
Outro utensílio muito útil é um caldeirão de alumínio de capacidade de dezoito litros, que me foi presenteado nos idos de 1992 por uma amiga e vizinha nessa época, a Rosilda, ex-procuradora do INCRA, órgão em que eu também trabalhava e no qual me aposentei.



                       
                                       O caldeirão
Esse, além de presente tem uma “estória” interessante. Tínhamos chegado a Belo Horizonte em retorno da cidade de Unaí, onde fomos fazer uma vistoria final do Projeto de Colonização Sagarana, com vistas à sua emancipação. Eu era o Presidente da comissão de emancipação. Nessa oportunidade nos acompanhava também outro procurador do INCRA, o advogado Froni. Em Belo Horizonte ficamos hospedados na casa da minha mãe, D. Ida, e aproveitamos parte de um dia em que trabalhávamos na Superintendência Regional do INCRA em Minas Gerais para visitarmos o famoso e tradicional Mercado Municipal, onde se pode encontrar uma grande variedade de produtos entre hortigranjeiros, ferragens, alumínio, flores, pássaros criados em cativeiro e muitas coisas mais. Nessa visita, a Rosilda sabendo das minhas habilidades culinárias e do preparo de doces de frutas, me presenteou com o tal caldeirão.
O cômico foi trazê-lo para Brasília. A nossa volta seria de avião e eu deveria permanecer em Belo Horizonte por mais uns quatro dias. Aí a Rosilda decidiu que o Dr. Froni deveria trazer o presente para mim. Acontece que, devido ao tamanho do presente ele não cabia nem no bagageiro superior e nem à frente da poltrona do passageiro num 737 antigo da VASP. Assim, o Dr. Froni teve que trazê-lo no colo, conforme a determinação da Rosilda que assim o exigiu. E assim ele o trouxe. Já  há vários anos ela habita algum plano espiritual, mas sempre que utilizo o caldeirão me vem a sua lembrança amiga e faço uma prece por ela.
Mas o objeto que me levou a iniciar esta “estória” foi uma faca. Essa me foi presenteada, entre outras coisas, pelo conterrâneo e amigo João Queiroz Filho, o Joãozinho Queiroz como o chamávamos.
                       
                                       O presente

As lembranças dele são muitas e todas muito alegres e interessantes. Mas a faca me remete aos anos de 1956/58, pelo menos.
Nessa época eu estava estudando no Curso Científico em Ubá e no último servindo o exército em Juiz de Fora, mas sempre presente em Guidoval, tempo em que festas e bailes eram frequentes e eu participava do conjunto musical juntamente com o Seu Odilon Reis, tocando violão, violino e trombone de pisto ou de vara; o Seu Nilo barbeiro, tocando banjo, cavaquinho, violão ou violino; o Julinho da estatística tocando trumpete (pistom), o Neto na bateria e eu no acordeom.
O serviço de bar nesses bailes era prestado pelo Joãozinho Queiroz, que durante a semana trabalhava no bar do Seu Chico Caputo, num prédio hoje lamentavelmente demolido na esquina da Rua do Fundão (sete de setembro) com a Rua do Stoque (João Januzzi).
Muitos desses bailes eram realizados na parte superior do prédio do então Armazém do Zé Estulano na Rua do Stoque.
No intervalo entre as músicas que eu tocava com o Conjunto eu era também o garçom que servia as mesas com os petiscos e bebidas solicitados pelos presentes. No bar do salão não havia máquina de fatiar frios (presunto, mortadela, salame e mozzarella) o que era feito com uma faca fina apropriada, como a da foto acima, e habilidade manual. Tanto o Joãozinho como eu realizávamos essa tarefa. Nunca me esqueci desses eventos. Ainda hoje tenho essa faca e a utilizo muito especialmente para cortar couve bem fina e fatiar outros legumes e frios.
                       
        Na foto: Bebeto Ramos, Joãozinho Queiroz, Mariozinho e Desidério

A partir de 1959 fui mui morar em Belo Horizonte, onde eu, o meu irmão Aulo e o conterrâneo e amigo Ronon Rodrigues nos preparávamos para os exames vestibulares. Moramos em várias pensões de estudantes. Nessa época o Joãozinho tinha uma barraca no Mercado Municipal bem na entrada da Rua Curitiba. O mercado ainda não era coberto. Essa barraca era nada mais que um armário grande e profundo, de madeira. O produto principal vendido era fumo de rolo de diversos tipos e origens, além de palha e papéis apropriados para a confecção de cigarros artesanais, operação essa realizada pelos próprios usuários.
Nessa época éramos apenas estudantes e vivíamos às expensas do nosso pai, o Dr. Mario Geraldo de Meireles, médico em Guidoval. Este havia autorizado ao Joãozinho que nos entregasse semanalmente uma certa quantia de dinheiro para passarmos a semana e, na última do mês, também o valor da mensalidade da pensão do cursinho. Gastos extraordinários tinham que ser previamente autorizados. Os acertos de contas eram feitos pessoalmente quando nosso pai vinha à Capital ou então através de caminhoneiros que traziam produtos agrícolas de Guidoval para a Capital, mais frequentemente conterrâneo Paulo Ramos.
Muitas das vezes que íamos a Guidoval retornávamos à Capital na carroceria do caminhão do Paulo, junto das mercadorias trazidas. Poderia parecer muito sacrifício essa viagem. Mas, quando se tinha dezenove ou vinte anos, naquela época, tudo era aventura e plenamente suportável e ainda não havia proibição de transportar pessoas na carroceria de caminhão. Ficávamos felizes com a carona e sobrava mais dinheiro para o almoço, às vezes num restaurante de Juiz de Fora, como no Faisão Dourado, onde comíamos lombo no feijão manteiga com arroz e fritas.
Uma carona para um caso do Paulo Ramos: certa vez alguém de Guidoval pedira para ele trazer-lhe uma garrafa de “água fluida” benzida em “passe” pelo Seu Tito farmacêutico (Mário Reis). Colocada atrás da poltrona do motorista, a garrafa tombou e derramou a maior parte do líquido. O Paulo constrangido, não teve dúvida, completou o conteúdo com água de torneira até o gargalo e arrolhou bem. Ficou apertado com o evento, mas não sabia das coisas da espiritualidade. Acontece que o resíduo da garrafa contaminou a nova água e o efeito se realizou para a pessoa que a aguardava.
Tempos depois o Joãozinho teve um armazém de atacado de cereais num prédio em frente ao Mercado, também na Rua Curitiba.
Muitas vezes ele nos convidava e ao Flávio Damato para almoçar em sua casa. E ao convidar ele fazia uma pilhéria conosco dizendo: “mas antes de ir comam pelo menos uns dois sanduiches”.
Depois da minha formatura em dezembro de 1965, em janeiro do ano seguinte fui trabalhar como administrador de uma fazenda em Corinto – MG. Nesse ano, no mês de março, os proprietários me deram uma Rural Willys para transporte e andanças na fazenda.
Nesse mesmo mês ali comecei a namorar uma linda garota dezenove aninhos com a qual me casei em janeiro do ano de 1968. Bem próximo do casamento, já no final de 1967, tive que vender a Rural para cobrir despesas decorrentes e foi o Joãozinho que a comprou por bom preço me ajudando nesse caso.
Ele com sua esposa Santinha foram meus padrinhos de casamento. Mantivemos o contato por muito tempo e me lembro que a última visita que lhe fizemos foi ainda em companhia do meu tio Mariozinho, seu amigo desde juventude e compadres. Acho que já contava com mais de 75 anos.
Também tenho lembranças da família do Joãozinho especialmente do se pai o Seu João Queiroz, exímio violonista que mereceu uma composição do Seu Nilo (Petronilo Alves), o Chorinho “Queiroz no Pinho”, que até hoje eu toco no acordeom e no teclado. Digo ainda toco, mas isto merece um esclarecimento. Passei cerca de vinte e seis anos sem acordeom, há pouco mais de dois meses voltei a tocar em um que me foi emprestado por um amigo e há vinte dias comprei um Paolo Soprani. Quanto à habilidade no teclado a estou recuperando melhor do que imaginava. Mas não tenho notícia que além de mim alguém saiba desse chorinho. Talvez nem mesmo seus filhos o saibam. Os que dele sabiam, acho que todos já se foram.
Também me lembro de seus irmãos e irmãs, o Maninho, o Totone, o José Lincoln, a Naná (Marina) que freira e muito amiga da tia Gildinha, a Dorinha que foi minha colega no curso primário na sala da D. Carmem Cattete e a Terezinha que se casou com o Dr. Edgar de Andrade. Do Dr. Edgar também tenho muitas lembranças e “estórias” que mereceriam um outro texto. Agora apenas duas.
A primeira, quando eu tinha provavelmente onze anos o seu pai, Seu Sebastião Vieira, me contratou para transcrever certidões de nascimento, casamento e de registros outros, das folhas de papel para os respectivos livros.  Eu era pequeno, os livros muito grandes e a caneta ainda era daquelas que se molhava a pena em tinteiros. Certa vez, transcrevendo certidões em um dos livros aconteceu o inusitado... distraidamente esbarrei no tinteiro e borrei todo um daqueles livros grandes, com todas as suas páginas rubricadas previamente pelo Juiz de Direito da Comarca. Não sei o que possa ter passado pela cabeça do Seu Sebastião naquele momento. Acho que não levei uma tremenda bronca ou até uns tapas, porque era filho do Dr. Mario, muito seu amigo. Esse livro estava preenchido até quase a metade. Soube muito tempo depois que o Tabelião adquirira outro livro e que foi o Dr. Edgar, acho que ainda estudante de Direito, que transcrevera tudo para o novo livro.
A segunda, eu já era estudante universitário. Numa tarde em que retornava de Ubá, e Juiz de Fora para Belo Horizonte num ônibus da UTIL, (provavelmente 1962/63?), estavam assentados nos bancos à minha frente o Dr. Edgar conversando com a Maria Leonor Viana. Não prestava atenção na conversa dos dois. Mas num dado momento, talvez devido à ênfase empregada, ouvi o Dr. Edgar dizer para ela: “o meu casamento é um prolongamento da lua de mel”. Nunca me esqueci dessa expressão, que achei linda e verdadeira, porque até hoje, próximo dos cinquenta anos de casado, posso repetir o mesmo.
Da minha parte não gostaria de voltar ou de viver como no passado. Mas acho muito interessante ter estado bem lá atrás e ainda estar aqui, próximo dos oitenta anos.
Como já disse o escritor Mario de Andrade: ”o passado foi feito para se recordar, mas não para se reviver. Muito embora também se repita muito que “recordar é viver”.
Mas, qualquer interpretação ficará a critério do interessado. Contudo, gosto de recordar coisas e “estórias” da minha terra Guidoval.

Brasília, 05 de julho de 2016

Plinio Augusto de Meireles

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