quinta-feira, 5 de abril de 2012

Fogo morto por Gagaça da Parecida do Benjamin.


A criançada sabia que no mês de julho, na fazenda do Sô Tão, o fogo ardia nas fornalhas que faziam borbulhar o caldo da cana para transformá-lo, primeiro, em melado e, depois, em rapadura, ambos gostosos como nada mais podia ser.

E sabiam também que antes, podia-se saborear o melado quente com angu ou inhame cozido, esticar a puxa-puxa, que escorria-lhes fartamente pelo queixo, por entre os dedos das mãos, terminando por lamber-lhes a blusa e até  a ponta do dedão do pé. Isso e muito mais era um sonho que durava meses e que se realizava no mês das férias escolares do meio do ano.

E era para lá que íamos em vários finais de semana seguidos, enquanto desfrutávamos das férias  em casa  nossa avó. Levantávamos cedo, antes mesmo que o preguiçoso Sol do mês de julho desse as caras em meio à neblina da manhã que tudo vestia com seu manto branco e espesso.

O caminho que os meninos e a avó percorriam era sinuoso, empoeirado, cercado de imenso canavial que se transformava em moldura viva da estrada, e marcado pelos pés dos passarinhos que  nele deixavam um bordado indefinido e incapaz de ser refeito por quem se atrevesse a repeti-los.

E nós, que então já carregávamos na mão os chinelos de borracha ou os tamancos de madeira, caminhávamos sinuosamente pelo caminho acompanhando as pegadas dos passarinhos na areia, pulando nos barrancos, levantando o talco fino e pesado pelo sereno que o envolvia, sentindo o cheiro gostoso do mato verde molhado pelo orvalho da noite, colhendo  as flores dos maracujás cujas ramas se esticavam nervosas sobre a antiga cerca de arame farpado já coberto pela ferrugem do tempo, indo esticada aqui, dando barriga ali, sem saber onde terminar, observando a última estrela da manhã que já esmaecia, dando lugar ao Sol que ainda se fazia preguiçoso, deixando transparecer um amarelo quase desmaiado.

A avó conduzia os netos para que não se confundissem nas encruzilhadas e mudassem o rumo da caminhada.
Ainda de longe, sentia-se o cheiro gostoso da cana já esmagada pelos enormes dentes da moenda, certamente já transformado na garapa e já borbulhando nas enormes tachas de cobre que ardiam durante todo o dia sobre as longas e vermelhas línguas do fogo, estimuladas pelo bagaço da cana moída.

Quando, enfim, lá chegávamos, já estavam na porteira, para nos receber, os primos da roça, que logo nos abriam os dentes numa risada gostosa de felicidade por estarmos com eles durante aquele dia. E também os cachorros que eram muito amigos, pois nos conheciam de vários anos seguidos. Pelo balançar do rabo de cada um deles sabíamos que nos seguiriam durante todo o dia, como amigos. Não entrávamos na casa. Deixávamos nossa avó no alpendre antigo, todo coberto por uma cortina de brincos de princesa e, alegremente ela era recebida pela irmã Antoninha. E corríamos  para o terreirão da fazenda.

Enquanto as filhas mais velhas cuidavam da arrumação da casa ou já cuidavam dos preparativos do almoço que prometia ser maravilhoso, brincávamos com os mais novos. Pulávamos nos montes de bagaço de cana, mexíamos as tachas borbulhantes de melado, pegávamos os patos e as galinhas que se descuidassem à nossa frente, brincávamos na água clara e murmurante do riacho que saborosamente passava a língua na areia que lhe servia de colo, fazendo rolar os pequeninos seixos, por entre os quais ela deslizava mansamente, bebíamos o leite quente e espumante que jorrava dos peitos das vacas e que Cavaco ou Xará ou Raimundo nos servia canecas esmaltadas ou de alumínio, colhíamos maracujá do mato, dependurados nas ramas, cobras finas enroscadas nos galhos das árvores.

No final da tarde, voltávamos para a cidade. Empoeirados, melados, cansados, levando na pele o gostoso cheiro da terra e do capim gordura, além dos bichos de pé que só seriam descobertos mais tarde, quando os dedos começassem a coçar.

Éramos muito crianças, mas como poucas, completamente felizes. Aqueles passeios eram umas das pequenas felicidades certas de nossa vida de criança.
Hoje, a fazenda não existe mais. O gado já não muge no curral. O engenho esfriou. As chaminés não cospem mais fumaça. A engenhoca enferrujou. O maracujá murchou. O caminho mudou seu rumo. Os passarinhos não bordam mais a areia fina com seus minúsculos pezinhos, porque esta foi levada pelo vento.

O canavial que espanava as nuvens do céu e se deixava ficar ao sabor do vento, foi cortado pela raiz. Os donos da terra se foram e a voz do “capitão” daquele eldorado se calou. Alguns filhos se mudaram para a cidade grande. Jovita e Penha também se foram. Da avó, só restam a saudade e as boas lembranças de um tempo que não volta mais. Os tempos mudaram. O rumo de tudo mudou e vivemos apenas das boas lembranças porque, hoje, o fogo é morto.

Crônica escrita pela Maria das Graças Santos Carmo inspirada nos passeios à Fazenda do Sô Tão e da sua Tia Antoninha.
Foi o seu primeiro trabalho publicado pela Editora Litteris - RJ, numa antologia chamada Escritores de Ouro, em 2002.

Parabéns, prima Gagaça, por nos proporcionar tão boa e nobre emoção recordando os tempos da nossa infância. 
 (foto tirada da internet)

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