sábado, 6 de junho de 2020


Rua Conde de Conceição/João Januzzi
(Rua dos Tocos ou Rua do Estoque?)

Esta história começa no século passado, no segundo milênio. Hoje completa 58 anos. Volto ao dia 06 de junho de 1962. Eu ainda não completara 10 anos. Faltavam 23 dias. Jogava Brasil x Espanha na Copa Mundial realizada no Chile. O Prefeito Eduardo Occhi fazia uma brilhante administração do município. Colocava-se calçamento, o primeiro da cidade, na Rua Conde de Conceição. Os mais antigos tratavam-na pela alcunha “rua dos Tocos” outros de “rua do Estoque”.
A rua encontrava-se interrompida pelas obras. No meio do logradouro abriu-se um corredor para abrigar as manilhas que receberia o esgoto das residências. Eu e o meu primo Manoel Vieira Abritta, que Deus o tenha, brincávamos nesta valeta aberta no meio da rua. Canos d’água cruzavam esta vala. Faziam parte da canalização de água potável na cidade que o Prefeito Otaciano da Costa Barros executou durante o seu mandato, quando distribuiu o precioso líquido por toda a cidade. Estes canos entrecruzavam-se o corredor aberto no centro da rua e nestas barras de ferro fazíamos acrobacias, piruetas, como se fôssemos trapezistas. Não passava de uma grosseira imitação aos artistas que assistíamos no Circo do Bicanca que se encontrava armado no Largo (Praça Santo Antônio).
E na Rua Conde de Conceição, uma das principais artérias de Guidoval, tinham vários casarões, a maioria agora demolida. Dizem que é o progresso. Tenho as minhas dúvidas.
Um desses casarões, que ainda resistem ao tal progresso, pertence à Dona Zita, esposa do saudoso José Damato. No primeiro andar, o térreo; têm três grandes portas de enrolar.
A primeira porta, à esquerda do prédio, abrigava a Coletoria Federal. Nela trabalhava o Sô Antônio José Barbosa Neto, mascate, comerciante, taxista, exator, escritor, ex-vereador e pródigo progenitor. Junto com a esposa Dona Geni Reis constituiu uma família admirável, tendo como primogênito o Márcio, seguido por Túlio, Rilma, o poeta Zé Francisco, Hélio, Carolina e o caçula Antônio.
A porta do meio servia de garagem e oficina ao Jeep Land Rover, verde oliva, ano 1951, capota, lataria e motor de alumínio. Era desmontado e remontado, costumeiramente, pelos filhos Flávio e José Sérgio e, anos depois, pelos meninos Antônio e Ricardo. Além destes rapazes Dona Zita e José Damato tiveram as moças: Maria Rosa, Vilma, Ilka, Noêmia e Helena. José Damato era maçom, representante comercial e vereador. O seu pai, Juca Damato, fora delegado por um bom tempo na cidade.
Na terceira porta, à direita do sobrado, funcionava o consultório do dentista Dr. Jair Venâncio. Na antessala, além do mobiliário normal, na parede exibia-se um grande quadro da seleção brasileira, retratando os campeões do mundo em 1958, vestindo uma improvisada camisa azul. A escalação da seleção, todo apaixonado por futebol sabe de cor, mas vale a pena repetir: Gilmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando e Nílton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Vavá, Pelé e Zagalo.
Nesta tarde, o Dr. Jair trabalhava no seu gabinete, mas deixara o rádio ligado num volume bem alto, para possibilitar às pessoas agrupadas à porta, acompanhar a partida que se desenrolava no Estádio Sausalito na cidade de Viña del Mar.
Com uma família grande a sustentar, Dr. Jair, não podia dar-se ao luxo de paralisar as suas atividades por causa de uma partida de futebol, logo ele, um botafoguense apaixonado e ex-jogador do Cruzeiro de Guidoval.
A esposa, Dona Conceição Sobral, lhe deu oito filhos. Nesta ocasião, já tinham nascido o Jorge (primogênito), Nilton Santos (nome em homenagem à “enciclopédia”), Francisco Otávio (Tavinho), Ângelo (Lopeta) e Maria da Conceição (Titita). E ainda nasceriam o Júlio, Deuziane e Ivanise, além de adotarem a Isabela.
O jogo começara às 14 horas. E mais adiante, na mesma rua, outro aglomerado de pessoas ouviam a narração do match na Barbearia do Elzo de Barros, outro botafoguense, amigo e companheiro do Dr. Jair em caçadas e pescarias. A barbearia localizava-se onde hoje é a Loja do Sôca. E antes fora comércio e residência do Antônio Martins Nogueira, o Toninho do Açougue.
A partida desenrolava-se equilibrada, jogo duro. A seleção brasileira sem o Rei Pelé, contundido na partida anterior contra a Thecoslováquia. O mineiro de Três Corações já era considerado REI do futebol. A Espanha desfalcada de Di Stéfano, um grande craque argentino naturalizado, também com problemas físicos.
Por volta das quatorze horas e trinta e cinco minutos um vozear de espanto, depois um silêncio ensurdecedor tomou conta dos dois grupos atentos à transmissão esportiva. O atacante Adelardo Rodrígues fizera um gol para Espanha, abrindo o placar. Este resultado poderia eliminar o Brasil. O primo Manoel e eu interrompemos, por instantes, a nossa peraltice para saber o que estava acontecendo, mas imediatamente voltamos a brincar na valeta. A partida continuou.
Ao começar estas recordações, a minha intenção era apenas lembrar o jogo do Brasil e Espanha, o povo ouvindo a partida através dos rádios do barbeiro Elzo de Barros e do Dr. Jair Dentista. Eu e o meu e do primo Manoel se divertindo no meio da rua que estava recebendo calçamento na gestão do Prefeito Eduardo Occhi. Mas as histórias têm disso, evoluem dentro da cabeça da gente, saem do controle e nos levam por caminhos inimagináveis. Os casarões e saudosos moradores pediram para participar desta narrativa. Gente que povoou a minha infância e habita a minha memória. Não poderei deixar sem voz estes conterrâneos.
Voltando a falar dos casarões. O sobrado à esquerda da moradia do José Damato, pertencia ao Sô Tatão de Freitas, marido de Dona Ernestina, telefonista do Posto de Serviço da cidade (PS1). Fazia conexão entre Guidoval e o mundo. O link com a população eram os recadeiros Kael e Manoel da Sá Joaquina que iam avisar às pessoas que tinha uma ligação telefônica para elas. Depois, neste local, passou a morar a família do Sô Djalma (Adjalme Pacheco), agricultor, violeiro, cantador, festeiro e de bem com a vida.
Caminhando rumo à ESQUINA, a seguir tinha o Sobrado do Chico Caputo. Na parte de cima residiam ele, a esposa Dona Das Dores e a Gildinha, zelosa companhia da família. Na parte de baixo, o Bar da Esquina de muitas histórias. Além do Chico Caputo, o estabelecimento teve vários proprietários. Cito alguns, João Queiroz Filho, Sô Elísio Avidago, Pequeno Magalhães, Sô Queiroga, os irmãos Geraldo e João Tolentino, o Wagner e por último o Fernando do Mazinho. Diversos garçons passaram pelo bar. O Totonho, filho do João Queiroz, Zé Júnior (neto do fazendeiro Sô Tão) e o Tarcísio Caetano que virou personagem no samba do Josias do Pombal.

Dou um pulo de 1962 ao ano 2020 para fazer uma retrospectiva mais ampla.

Antigamente, a cidade acordava junto com abertura do Bar da ESQUINA. O meu pai, Prefeito José Vieira Neto (Zizinho do Marcílio), madrugador, fazia o café em casa, mas ia depressa saborear o cafezinho no Bar da Esquina e, claro, saber das primeiras novidades do dia. O Prefeito Sebastião Cruz tinha cadeira cativa, postada à mesa ao lado da primeira porta do bar, no lado da Rua do Fundão (Sete de Setembro). Toda manhã, cercado por fiéis escudeiros. Nos últimos tempos, eram o Dr. Jair Dentista, José Bouzada, Zimbim (José Domiciano Soares) e Zé Carlos do Zé Bento. Os adversários apelidaram o Sebastião Cruz de Caburé. Ele adotou o apelido, tornou-se um símbolo de campanha e passou a colecionar corujas e caburés. O Jairo, filho do Prefeito Cândido Mendes, muitas vezes, transportou o Sebastião Cruz da sua casa à Rua Vereador João Cézar de Matos até o bar e depois o levava de volta à sua morada. Com isto, o Jairo tem muitos casos para contar.
O Prefeito Élio Lopes dos Santos foi outro assíduo frequentador do recinto, onde fez alianças e articulações políticas, dividiu mesa com amigos e correlegionários.
Não era comum, mas uma vez ou outra, aconteciam rodadas musicais. Tive o privilégio de assistir Sô Nilo, ao violão, acompanhar Vicente do Dario e o Barão (Zé do Fio).
Muitos negócios se realizaram entre um gole de café e um copo de cerveja. Compras de fazendas, vendas de imóveis e boiadas, fofocas e verdades.

MARCO ZERO

É a ESQUINA que considero o MARCO ZERO. A confluência da Rua do Fundão (Sete de Setembro), Rua do Campo (Padre Baião), Ponte Raul Soares (derrubada na enchente de 2012, hoje a Passarela João Tolentino) e a Rua dos Tocos(?) ou Rua Estoque(?), antes Conde de Conceição, hoje João Januzzi, de Guidoval.
Tudo leva a crer que foi neste local que Guido Thomas Marlière parou para descansar, quando da sua primeira viagem do Presídio São João Batista até a Serra da Onça. Após percorrer, aproximadamente, três léguas, margeando o Rio Chopotó, parou, matou a sua sede, a de seus companheiros e deu de beber aos animais que os transportavam. Teve a ideia e construiu uma casinha de SAPÉ para um rápido repouso, antes de seguir viagem. Guido Marlière não sabia, mas estava plantando uma cidade. Em retribuição, os seus habitantes, lhe homenagearam denominando-se GUIDOVAL. E o pintor, músico e poeta Domingos Coelho da Silva registrou em uma de suas canções “Guidovalense de Guidoval”.
No final do século XIX, residiu na então Freguesia de Sant'Ana do Sapé o Dr. Manoel Basílio Furtado, médico, empresário e historiador, que fez as primeiras anotações sobre Guido Marlière, tornando-se o primeiro biógrafo do nosso fundador. Tirou algumas fotografias do lugarejo. Uma delas registra a ESQUINA, um esbarrancado, desnivelado, que queria ser rua.
Esta situação caótica perdurou até que o Prefeito Dilermando Teixeira de Magalhães, nos idos de 1950, rebaixou e nivelou a rua, dando-lhe aparência de urbanidade. Mas para executar esta obra teve que enfrentar descontentamentos dos moradores que tiveram que adaptar as suas residências ao novo perfil topográfico. Surgiram os casarões. Conta-se que houve revólver em punho, bravatas, enfrentamentos, antes que as máquinas pudessem terraplanar o terreno.
Na década de 50, do lado oposto do Sobrado do Chico Caputo, existia o Casarão do Juca Damato, delegado da cidade por muito tempo. O médico Dr. Mário Geraldo de Meireles residiu na parte de cima e teve consultório na parte debaixo, onde também tinha uma sinuca administrada pelo Sô Nicolau, além de uma sala de carteado e uma vidraçaria. Meu tio José Gomes morou neste casarão no final da década de 60. Depois foi demolido. O João Tolentino de Souza edificou um prédio. Na parte de cima mora a sua Família. Na parte debaixo abrigou a Minas Caixa e hoje o Banco do Brasil. Ao lado tem um consultório e a FarmaCentro.
Do outro lado da rua, entre a Rua do Campo e a ponte, ficava o Casarão do Sô Dionísio Maciel, que foi Juiz de Paz e Vereador. Na parte de cima, como sempre, a moradia da família; na parte de baixo, por um tempo, teve o comércio dos seus netos, Gilson e Dirceu, filhos do agente público Gil Fontes de Queiroga. Era uma venda bem sortida. Fazia entregas a domicílio. O delivery era feito, de bicicleta, pelo Zé Ratinho.
Na frente deste imóvel, na noite do dia 25 de julho, acendia-se uma fogueira, erguia-se um Mastro e no topo uma imagem da nossa Padroeira Santana. A Congada, comandada pelo Benedito Medeiros, simulava uma luta entre mouros e cristãos que sempre venciam. Com muitas fitas e bandeiras coloridas, num bailado coreografado e dramático, cantorias, ao ritmo de caixas de percussão, ganzás, taróis, pandeiros, reco-recos, acompanhados por cavaquinho, violão, sanfona extasiavam o público presente. O que mais me encantava era o ritmar dos chocalhos amarrados às pernas dos dançarinos, num sapatear cadenciado. Para mim, o apogeu ocorria quando a espada do Benedito Medeiros, riscando o chão de terra, tirava faíscas, em alguma pedra descuidada, parece até que fora colocada ali de propósito. As fagulhas se confundiam com as chamas da fogueira.
No convite da primeira festa do “Dia do Guidovalense”, em 1961, não constava da programação oficial este ritual da fogueira, Mastro de Santana e Congada. A primeira aparição se deu em 1.964 informando que às 19 horas, do dia 25 de julho, haveria o “Levantamento do mastro com quadro da Padroeira, junto à tradicional fogueira”. Somente em 1.969 começou a procissão até Praça de Santana, mesmo assim saindo do Fundão, no Posto Esso do Sô Elísio Avidago. No ano seguinte, em 1970, a procissão saiu da ESQUINA, confluência da Rua Sete de Setembro com Padre Baião. Nos últimos anos, a procissão do Mastro sai da Casa de Ana Marcília Ramos e José Dias, à Rua João Januzzi.
Do lado oposto do Casarão do Sô Dionísio Maciel, a lado da ponte, tinha uma casa que foi destruída pela enchente de 2.012.

MAS esta e outras histórias contarei em outro post.
Pretendo percorrer toda a rua. Da Esquina até o Largo.
Aguardem...


















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