GYMNÁSIO SÃO JOSÉ
(reminiscências do Dr. Plínio Augusto de Meireles).
Ainda há pouco, lendo uma das
crônicas de Rubem Alves, onde ele fala de um certo Professor Severino que, ao
introduzir seus alunos no encanto da poesia, sugeria que eles fizessem uma
lista dos sons que ouviam na sua infância como: o canto do galo, o trinar do grilo,
o sino das igrejas, o cantar do carro de bois, o apito da locomotiva a vapor
etc.
Também lembra que T. S. Eliot
escreveu que: "ao final das nossas longas andanças, chegamos finalmente ao
lugar de onde partimos, e o vemos pela primeira vez". Agora nossos olhos
são diferentes; são os olhos da saudade.
Assim me lembrei que no ano de
2012, não me recordo o mês, retornando da minha terra natal, Guidoval, em
direção a Belo Horizonte, ao passar pela estrada que liga Ubá a Tocantins, ao
olhar à esquerda logo na saída, deparei com uma paisagem bem conhecida minha.
Estava passando em frente ao antigo "Gymnasio São José". Um internato
dirigido pelo Dr. Newton Carneiro, aonde chegavam alunos de diversas
localidades, inclusive de fora do Estado de Minas Gerais.
Não tive dúvidas. No primeiro
retorno tomei a direção de volta e entrei naquele sítio. Deparei com as
instalações preservadas do que foi aquele estabelecimento de ensino. Não sei
até quando funcionou.
Procurei algum encarregado e
pedi permissão para percorrer todas as instalações. Foi emocionante. Naveguei
no passado e como falou Eliot, eu também tudo vi realmente pela primeira vez,
certamente com os olhos da saudade. Naquele ano de 1952, eu, o meu irmão Aulo,
e o amigo e conterrâneo Ronon Rodrigues estávamos ali internos para estudar na
primeira série. Tínhamos que pensar muito nos estudos e não tínhamos ainda a
consciência de observador.
Não podíamos imaginar, então,
que aquele ambiente todo viraria história em tempo não tão distante.
Logo ao transpor a porta de
entrada avistei a escadaria que leva ao piso superior. No alto, em uma viga de
grosso madeiro lavrado, ainda estava a inscrição em latim idealizada e
enunciada pelo fundador do estabelecimento, Dr. José Januário Carneiro, o "Dr. Fecas": "DULCE ET DECORUM PRO JUVENTUTE LABORARE"
(Como é doce trabalhar pela juventude).
Antes de subir, passei pelas salas de aula que se localizavam no piso
térreo, onde avistei as mesmas carteiras em que estudávamos no ano de 1952, um amplo salão de estudos
chamado "re-pouso" no qual passávamos a maior parte das tardes
estudando e fazendo os deveres passados pelos professores, ainda mobiliado da
mesma forma, e o refeitório onde tomávamos todas as refeições. Na parte
dos fundos um longo corredor com muro
baixo para o exterior do prédio, no qual estavam instaladas mais de trinta torneiras de água devidamente amparadas por
uma mureta de escoamento, local onde fazíamos a higiene bucal matinal, após as
refeições e à noite antes de dormir.
No início desse corredor, bem
no alto afixado em uma peça de madeira, ficava um sino de bronze, de uns 40
centímetros de altura e cerca de 30 de boca, cujas badaladas nos acordavam pela
manhã e anunciavam o início, os intervalos e o final das aulas, bem como os
horários das refeições, do "repouso" (hora de estudo) à tarde e da
hora de se recolher para dormir.
No piso superior ficavam os aloja mentos dos alunos, com as
camas alinhadas lado a lado, tal como num quartel militar. Na época camas de
molas, as famosas "Camas Patente", com colchões de capim, às vezes
denominados crina vegetal. Havia o alojamento dos maiores, alunos que frequentavam a 3ª e 4ª séries ginasial e o dos menores, os que frequentavam a 1ª e 2ª
séries.
Durante a noite esses dormitórios eram vigiados pelos chamados
Chefes de Disciplina, escolhidos entre os alunos maiores.
Eram encarregados de manter a
ordem, evitar balbúrdias noturnas e garantir o sono tranquilo e reparador das
energias para as atividades do dia seguinte.
Esses alojamentos eram
ladeados por uma ampla varanda cercada por um gradil baixo de madeira.
Se algum aluno cometia
indisciplina no alojamento, o Chefe poderia fazer-lhe uma advertência que, se
não acatada, poderia resultar na sua expulsão do alojamento por tempo
determinado pelo Chefe, ficando do lado de fora, na varanda, ainda que
estivesse o tempo frio.
Me lembro muito bem. Aquele
que sofre, nunca esquece. O Chefe de disciplina dos menores naquele ano era o
conterrâneo Francisco Pinto de Aguiar, o Chiquinho do Casinho. Numa certa noite, não me lembro a
razão ou o que eu teria feito, mas o Chiquinho me pôs para fora do alojamento e
eu passei quase toda a noite dormindo no piso da varando só de pijama, que
naquela época era feito de tecido leve mas de mangas e calças compridas.
Além dos chefes de disciplina,
havia outro aluno escolhido entre os maiores, geralmente da 4ª série, para ser
o "badalista"; aquele que
tocava o sino nos momentos devidos. Ao que me lembro, o badalista era o Miguel,
não me recordo o seu sobrenome, mas que não gostava do apelido que lhe deram de
boca murcha, "Miguel boca murcha".
No terreno do ginásio havia
uma represa onde era permitido a natação e banho, salvo engano, às quartas
feiras. Mesmo com a água toda barrenta, vermelha, não nos importávamos.
Ficávamos lá todo o tempo permitido. Aos olhos de hoje, se um dos pais,
principalmente as mães, vissem aquela piscina, com certeza chamariam a ANVISA
para interditá-la. Mas na época isso não era levado tão a sério e não me lembro
de que algum aluno tenha adoecido pelos banhos lamacentos. Hoje não se fazem
mais crianças (ou pais) como naquele tempo.
Como não poderia deixar de
ser, estando no Brasil, no ginásio havia também um campo de futebol, esporte
também conduzido pelo professor de Educação Física.
Quando fomos admitidos alunos
desse ginásio, aprovados em exame depois de frequentar, já naquela época, um
curso preparatório, no nosso enxoval de interno, além do nosso uniforme de brim
cáqui, no estilo da farda policial de Minas Gerais, devíamos levar também
uni-formes adequados à prática da educação física e do futebol. Nesse
particular me recordo de que, no primeiro dia de treino o professor colocou
todos os interessados numa ampla "meia lua" no campo. Observando uns
e outros, só de olho, pela sua experiência, selecionou os dois times a
disputarem a partida. Nesse primeiro teste, só de olho, já "levei
cerca". De cara ele percebeu que eu era um "perna de pau". Meu
irmão, contudo, foi selecionado; não me lembro se o Ronon fora também; meu
irmão jogava no colégio e depois em Guidoval, no ginásio e até no time do
Cruzeiro local. Eu no máximo conseguia alguma brecha nos times de roça e,
apesar das cacetadas não era expulso porque era filho do Dr. Mario.
Mas voltando ao São José, no
piso dos alojamentos dormitórios havia um grande salão onde deixávamos os
nossos pertences e roupas que ficavam guardados em um Baú grande de madeira,
fechado a chave que trazíamos conosco. Era nesse baú que também guardávamos,
junto com roupas, doces e outras guloseimas que as nossas mães nos enviavam.
Esse baú era diariamente visitado depois do almoço para saborearmos as
guloseimas maternas, mesmo que nos servissem sobremesa no refeitório.
Ao final das tarde, no
intervalo depois do jantar até a hora de dormir, ficávamos no pátio externo à
entrada do prédio do ginásio, bastante amplo, onde se conversava com os
colegas, jogávamos pelada com bola de meia, e espantávamos pernilongos e outros
insetos queimando bosta seca de vaca.
Da entrada do prédio do
ginásio avistávamos do lado oposto a residência do Diretor e casas de alguns
funcionários.
Nos fins de semana podíamos
passar o dia todo na cidade de Ubá. Os internos cujas famílias residiam nessa
cidade iam para as suas respectivas casas. Nós, os de outras localidades,
passávamos o dia perambulando por diversos locais da cidade, indo ao cinema da
matinê, tomando sorvetes e picolés, visitando algum conhecido, etc.
As saídas se revezavam. Se num
sábado saiam os maiores, no domingo saiam os menores. Na semana seguinte a
escala se invertia.
Para a saída caminhávamos a pé
quase dois quilômetros até a cidade, acompanhados do Chefe de Disciplina. Para
nós crianças essa distância parecia enorme, uma viagem. O retorno se dava,
salvo engano, lá pelas sete ou oito horas da noite. Alguns se reuniam inicialmente
no Bar Municipal, localizado na Praça ao lado da Igreja de São Januário. Esse
bar , ainda existente no mesmo local, hoje mais cervejaria, naquela época
servia lanches e salgadinhos em geral, além de uns deliciosos bolinhos
açucarados assados em forminhas de empadas. Esses, que tanto me ficaram na
memória visual e gustativa, passei a produzi-los em minha casa já há uns vinte
anos e são gulosamente saboreados a quem os ofereço. Deixando desse bar,
caminhávamos até o fim da cidade, na saída para Tocantins para, em outro bar
cujo nome não me lembro, esperarmos pelos retardatários. Voltávamos no escuro,
somente orientados pelo clarão da lua ou apenas pela luz das estrelas.
Essas saídas poderiam ser suspensas no caso de
mau comportamento do aluno durante a semana. Qualquer alteração comportamental
nas salas de aula levava o professor a aplicar no aluno uma penalidade chamada
"Seta". Caso o aluno levasse mais de três setas na semana, ficava
impedido de ir até a cidade. Além disso, dependendo do teor da proeza, poderia
ser instado a escrever "Linhas", cujas frases eram determinadas pelo
professor algoz, por exemplo: escrever 100 vezes ou até mesmo quinhentas vezes:
"Não devo me comportar mal na sala
de aula e respeitar o professor". Para isto recebíamos as folhas de
papel almaço necessárias à tarefa. Como as crianças naquela época já eram bem
espertas, costumávamos amarrar até
quatro lápis inclinados, no espaçamento das linhas do papel, e conseguíamos
escrever em um só movimento e de uma só vez até quatro linhas, reduzindo assim
o tempo do nosso castigo.
O Ginásio São José era muito
conceituado, não somente na região, e grandes nomes de políticos e
profissionais de diversas áreas passaram por lá.
Tenho lembrança de alguns professores, certamente não de
todos. O Dr. Newton Carneiro, era o Diretor, filho do Fundador e pai de um dos
nossos colegas da 1ª série, o Marciano, e era o professor de francês, falando e
escrevendo com desenvoltura esse idioma. O Professor Manoel Reis, lecionava
Latim. É, estudávamos Latim no primeiro ano ginasial. O Professor Manuel
Arthidoro, lecionava Matemática, Desenho Geométrico e Trabalhos Manuais. Nessa
última disciplina aprendíamos a trabalhar com madeira, cartão e argila. A
Professora Nilda, filha do Diretor, lecionava História, O Professor Honorico,
irmão do Diretor, não me lembro a matéria. Me lembro dele já em 1956, no
Colégio Estadual Raul Soares, lecionando química. Não me lembro quem lecionava
Português e Geografia. Música, acho que era a professora Maria Campos. Essa eu
a visitei já nos seus 100 anos no Asilo de Ubá. Não me lembro se tínhamos aulas
de religião mas, o ginásio contava com a assistência do Padre Luiz, quase como um ca-pelão, mas
não residia no local.
O Dr. Newton usava
ininterruptamente uma boina preta de seda, em todos os locais que frequentava.
Ao que falavam, ele teria sofrido algum distúrbio fisiológico que lhe produziu
a queda total dos cabelos. Diziam também que ele obtivera uma permissão
especial do Papa Pio XII para assistir à Santa Missa e outras cerimônias
litúrgicas coberto pela citada boina. Quando ele se dirigia à cidade ou outros
locais fora do ginásio em ambientes externos, a boina era substituída por um
chapéu de lebre, com tal rapidez e eficiência, que não permitia a terceiros observar
a sua calva. Hoje penso que seu comportamento seria bem diferente, levando em
conta que desde o aparecimento público do catarinense Esperidião Amim, entre
outros, inclusive eu, hoje removo todos
os pelos da cabeça com lâmina afiada e ainda passo um creme para dar um brilho.
De colegas me lembro de alguns
com os quais me relacionava mais ou nomes que me ficaram na memória por
qualquer razão. Um que foi da nossa 1ª série e estudamos depois até a faculdade
de Medicina Veterinária, também com o Ronon, foi o Jorge Rubinich, que tinha o
seu irmão mais velho André em série adiante de nós. Ainda como os anteriores,
da cidade de Rodeiro o Luiz (Pança); outros, como o José Nicolatino, o
Catabingas, assim apelidado pelo seu hábito de apanhar do chão o toco de cigarro
atirado pelos maiores fumantes. Era permitido a alguns alunos fumarem. Da
cidade de Tocantins vinham o Maurício Santiago, o Jojó e seu irmão mais novo, o
José Teixeira Rocha Pinto, O Zé Pururú, o José Teixeira Pires; esse, há pouco
tempo atrás o encontrei em Ubá, era advogado e provedor do Asilo local. O
Toninho Crispi, bem gordinho mas pudera, seu pai era o dono da Fábrica de
Macarrão. Também me lembro dos Carlos Cota; este chegou a ser Deputado Federal.
Um outro, salvo engano da terceira série, o Rômulo Rola, que escrevia as falas
que eu deveria proferir nas reuniões do Grêmio Escolar. Eu não tinha condições
de escrevê-las e era muito acanhado. Este colega o reencontramos muitos anos
depois, em 1959 ou 60, quando o Ronon se empregou numa loja de roupas
masculinas em Belo Horizonte, a ROLAVESTE, do mesmo proprietário de uma casa de
tecidos, a Casa Rola, onde encontramos o Rômulo trabalhando como vendedor. Essa
loja pertencia a um tio seu, o Senhor João Rola.
Em uma de nossas saídas, não
sei se sábado ou domingo, no ano de 1952, no final de uma tarde, me lembro que
na praça da Estação da Estrada de Ferro Leopoldina, uma multidão se aglomerava
em frente o Cine Brasil, que naquele dia e hora estava recebendo a Cantora
Ângela Maria, já no início de sua fama,
morena franzina mas esbelta. Eu a vi bem ao longe. Era muito pequeno, e não
conseguia passar por toda aquela aglomeração sem me sufocar.
Uma curiosidade que chamava a
atenção dos alunos era a bicicleta de um dos funcionários do ginásio, pelo fato
de ter um farol muito diferente dos que conhecíamos. Era um farol de luz de
carbureto. Quando escurecia o seu dono fazia gotejar água sobre o Carbureto de
cálcio, produzindo o gás acetileno. Era só acender um fósforo e o gás em chama
iluminava a estrada por onde ele devia passar.
Terminado o ano de 1952,
aprovado na 1ª série, já estava prestes a ser inaugurado o Ginásio Guido
Marlière em Guidoval. Assim, no ano seguinte eu, meu irmão, o Ronon e outros
guidovalenses que estudavam também em Cataguazes e Leopoldina, para ele nos
transferimos e permanecemos até a conclusão dessa etapa, para depois sairmos em
busca do Curso Científico (hoje 2º grau) em outras localidades. Eu, o meu irmão
e o Ronon retornamos a Ubá e nos matriculamos no Colégio Estadual Raul Soares por
mais dois anos. Salvo engano o Ronon completou aí o terceiro ano. Nesse período
eu e o Aulo estudamos música, violino e acordeom com a D. Chiquinha Dias Paes.
Em 1958 fui para Juiz de Fora para o serviço militar e lá, juntamente com o meu
irmão Aulo, passamos a estudar no Colégio Cristo Redentor, mantido pelos padres
da Sociedade do Verbo Divino - SVD.
Duas curiosidades nesse ano de
1958: a primeira foi que no dia 9 de junho, juntamente com mais cinco soldados
da FEA, em Benfica, participei da Guarda de Honra montada para o velório de D. Justino José de Sant’ Ana,
Bispo de Juiz de Fora falecido naquela data.
A outra que, salvo o engano do mês, mas acho que foi
setembro, fui de Juiz de Fora para Ubá a convite da D. Chiquinha Dias Paes,
para com ela, no Órgão, Senhor Odilon Reis, 1º violino e eu, 2º violino,
executarmos um pequeno trecho do "Messias de Händel", o Aleluia, além
de outras músicas, no casamento do Deputado Euro Arantes, advogado, nascido em
Guidoval, famoso em Belo Horizonte pela criação do Jornal satírico o
"Binômio", juntamente com seu amigo José Maria Rabelo. Foi a última
vez que participei de uma apresentação tocando violino. Nunca mais toquei,
mesmo tendo até hoje esse violino, todo revisado e mantido, à espera de um
músico.
Foi um tempo muito bom e
alegre, como quase todos os momentos passados da minha vida. Não tenho
recordações de coisas e momentos desagradáveis. Se os tive, caíram no esquecimento.
Alguma decepção passageira, pode ter ocorrido, mas nada que me trouxesse
desgaste, sofrimento, angústia prolongada ou qualquer tipo de sequela. Até hoje
acho sempre tirei vantagem até mesmo das adversidades. Acho que sou um sortudo.
Brasília, 03 de março de 2014, 03,00 horas.
Vista lateral do Gymnasio
Vista frontal do Gymnasio
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