Homens e animais (João
Pereira Coutinho – FSP de 22/10/2013)
Os defensores da
libertação animal preferem que sejam os homens no lugar dos bichos nos
laboratórios?
É uma marca de progresso:
a discussão sobre os "direitos dos animais" chegou ao Brasil. Com
estrondo: leio nesta Folha que centenas de cachorros foram resgatados de um
instituto de pesquisa médica no Estado de São Paulo. A violência veio a seguir,
com carros vandalizados ou completamente destruídos.
Nada de novo na frente
ocidental. Na Inglaterra, por exemplo, tenho amigos que trabalham com ratinhos
de laboratório em suas pesquisas científicas. Nenhum deles comenta o fato em
ambientes, digamos, sociais. Como bares, cinemas, restaurantes. Nunca se sabe:
pode haver um fanático da "libertação animal" por perto e as coisas
descarrilam facilmente.
Como já descarrilaram no
passado: histórias de insultos, ameaças de morte, agressões físicas e até
profanação de sepulturas de familiares de cientistas fazem parte do cardápio.
Na experimentação médica, o silêncio, e não o cachorro, é o melhor amigo do
homem. Como se chegou até aqui?
O filósofo Roger Scruton
escreveu um livro a respeito ("Animal Rights and Wrongs", editora
Continuum, 224 págs.) que ajuda a explicar o fenômeno.
E o fenômeno explica-se
com o declínio da religião nas sociedades ocidentais: quando os homens
acreditavam que eram os seres superiores da criação, ninguém pensava nos
"direitos" ou nas "sensibilidades" dos bichos. Nós, e
apenas nós, tínhamos sido criados à imagem e semelhança do Pai. Não havia como
confundir um ser humano com um batráquio.
A "morte de
Deus" alterou a discussão: se não existe um Pai com seus filhos
prediletos, então todos somos habitantes do mesmo espaço --e todos somos, como
diria o extravagante Peter Singer, criaturas dotadas de "senciência",
ou seja, capazes de experimentar a dor e o prazer. Donde, evitar a dor é um
imperativo tão legítimo para humanos como para animais.
Claro que, nas teorias de
"libertação animal", nem todos os animais desfrutam da mesma sorte
empática: acredito que mesmo Peter Singer, nas tardes de insuportável calor
australiano, também seja capaz de matar uma mosca ou duas.
Mas o leitor entende a
ideia: se conseguirmos imaginar um animal a falar e a cantar num filme Disney,
por que não conceder-lhe estatuto moral pleno?
Porque isso é uma
aberração filosófica, explica ainda Roger Scruton sobre o argumento Disney:
existem traços básicos da nossa comum humanidade que estão ausentes do restante
mundo animal. São esses traços que fazem com que "nós", e apenas
"nós", sejamos seres morais no sentido pleno da palavra.
"Nós", e apenas
"nós", somos capazes de julgar, meditar, revisitar o passado, planear
o futuro --desde logo porque somos seres temporais por excelência, conscientes
da nossa história e do nosso fim.
"Nós", e apenas
"nós", somos dotados de imaginação e, sobretudo, de "imaginação
moral": somos capazes de rir, corar, sentir remorsos ou alimentar
indignações (e premeditadas vinganças).
E, talvez mais importante,
"nós", e apenas "nós", somos capazes de reivindicar e
defender "direitos", o que implica que "nós", e apenas
"nós", somos capazes de entender o que significam certos
"deveres". Como, desde logo, o "dever" de não infligir dano
desnecessário sobre animais (moscas excluídas).
Será a pesquisa científica
um "dano desnecessário sobre animais"?
Não creio, sobretudo
quando contemplo as alternativas. O americano Carl Cohen, outro filósofo sobre
estas matérias que também recomendo aos interessados (com o seu "The Animal
Rights Debate"), é primoroso ao colocar o problema no seu duplo e
potencial impasse: os defensores da libertação animal preferem que sejam os
homens a tomar o lugar dos bichos nos laboratórios?
Ou preferem antes que não
existam mais cobaias nos laboratórios e que os avanços científicos possam parar
de vez neste ano da graça de 2013?
Boas perguntas. Esperemos
pelas respostas. Mas, até lá, talvez não fosse inútil convidar os militantes da
"libertação animal" a recusarem daqui para a frente todos os tratamentos
médicos que têm no seu historial o uso de animais em laboratório. Em nome da
coerência.
Se isso significar, no
limite, a morte de alguns dos militantes, tanto melhor: unidos na vida, unidos
na morte.
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