A Saga de
Guillaumet
(Livro “Terra dos Homens de Antoine de Saint Exupéry)
“Comecei a fazer voltas
sobre a lagoa, a trinta metros de altura, até a pane de gasolina. Depois de
duas horas de manobra desci e capotei. Quando saltava do avião, a tempestade me
lançou ao solo.
Firmei-me novamente nos pés e ela me virou outra vez. Tive de me
meter sob a carlinga e cavar um abrigo na neve. Naquele buraco cerquei-me de
sacos postais e, durante horas, esperei. Depois disso,quando a tempestade
amainou, comecei a andar. Andei cinco dias e quatro noites”.
Exaurido pouco a pouco de seu sangue, de suas forças, de sua razão,
avançava com uma teimosia de formiga, voltando sobre os passos para contornar
um obstáculo, erguendo-se depois das quedas, subindo escarpas que iam terminar
no abismo, sem se permitir nenhum repouso, porque não poderia se erguer,
depois, de seu leito de neve. Quando escorregava, precisava se levantar
depressa, para não ser transformado em pedra. O frio o petrificava de segundo a
segundo. Se quisesse descansar, depois de um tombo, um minuto de repouso a
mais, quando tentasse se erguer só encontraria músculos mortos.
Era preciso resistir às tentações: “Na neve a gente perde todo o
instinto de conservação. Depois de dois, três, quatro dias de marcha tudo o que
se deseja é o sono. Eu o desejava. Mas ao mesmo tempo pensava: Minha mulher...
se ela crê que estou vivo, ela crê que estou andando. Os companheiros crêem que
estou andando. Serei um covarde se não continuar andando. E andava. Cada dia
alargava um pouco mais, com a ponta do canivete, um corte na costura da botina,
para que os pés gelados, inchados, ainda pudessem caber ali dentro”.
“Do segundo dia em diante meu trabalho maior foi procurar não
pensar. Sofria demais, minha situação era desesperada demais. Para ter a
coragem de andar, precisava não pensar nisso.
Desgraçadamente controlava mal o cérebro: ele trabalhava como uma
turbina. Mas eu ainda podia escolher as suas imagens. Fazia-o pensar em um
livro, em um filme. E
o filme e o livro desfilavam dentro de mim depressa: voltava à realidade da
situação presente. Irremediavelmente. Então eu jogava ao meu cérebro outras
recordações para que ele fosse se entretendo”.
“Fiz o que pude e não tenho mais esperança; por que me obstinar no
martírio?” Bastava fechar os olhos para fazer a paz no mundo. Para retirar do
mundo os rochedos, o gelo, a neve. Logo que as pálpebras milagrosas se
fechassem, já não haveria mais os golpes, nem os tombos, nem os músculos doridos,
nem o gelo ardente, nem esse peso da vida quando a marcha de um homem é como a
marcha de um boi e quando o peso da vida é mais pesado que um carro. Você já
gozava aquele frio que era veneno, aquele frio que era morfina enchendo o corpo
de beatitude. Sua vida refugiava-se em torno do coração. Algo de precioso e
doce encolhia-se no centro do seu ser. A consciência pouco a pouco abandonava
as regiões longínquas daquele corpo, daquela pobre besta esgotada pelas dores
que já começava a participar da indiferença do mármore.
Os remorsos vieram dos subterrâneos da consciência. Ao sonho
misturaram-se de repente detalhes precisos. “Pensei em minha mulher. Minha
apólice de seguro de vida lhe evitaria a miséria. Sim, mas o seguro...”
No caso de desaparecimento, a morte legal só é declarada depois de
quatro anos. Este detalhe lhe apareceu nítido, apagando todas as outras
imagens, seu corpo estava estendido ali, de bruços, em um forte declive, na
neve. Quando viesse o verão ele rolaria com a lama, para um dos mil precipícios
dos Andes. Você o sabia. Sabia também que um rochedo emergia das neves
cinqüenta metros à sua frente. “Aí eu pensei: se me levantar poderei chegar até
lá. Se escorar bem o meu corpo na pedra ele será descoberto quando vier o
verão...”
Uma vez de pé, andou duas noites e três dias. Mas não pensava em ir
muito longe: “Muitos sinais me anunciavam o fim. Por exemplo. Era obrigado a
parar de duas em duas horas para abrir um pouco mais as botinas para esfregar
neve nos pés que inchavam ou simplesmente dar um pequeno descanso ao coração.
Nos últimos dias comecei a perder a memória. Muito tempo depois de recomeçar a
marcha é que me lembrava: havia esquecido alguma coisa. Da primeira vez foi uma
luva, e isso era grave, com o frio que me gelava as mãos; eu a havia deixado no
chão, ao meu lado, e seguira caminho sem apanhá-la. Depois foi o relógio.
Depois o canivete. Depois a bússola. Em cada parada eu me empobrecia. O que salva é dar um passo. Mais um passo. É sempre o mesmo passo
que se recomeça. O que eu fiz, palavra que
nenhum bicho, só um homem, era capaz de fazer.”
Se alguém falar a Guillaumet de sua coragem ele dará de ombros. Mas
seria traí-lo também celebrar sua modéstia. Ele está muito além dessa qualidade
medíocre. Se dá de ombros é por sabedoria.
Sabe que uma vez no centro do perigo os homens não se horrorizam
mais. Só o desconhecido espanta os homens. Sua verdadeira qualidade não é essa.
Sua grandeza é a de sentir-se responsável.
Responsável por si, pelo seu avião, pelos companheiros que o
esperam. Ele tem nas mãos a tristeza ou a alegria desses companheiros.
Responsável pelo que se constrói de novo, lá, entre os vivos, construção de que
ele deve participar. Responsável um pouco pelo destino dos homens, na medida de
seu trabalho.
É um desses seres amplos que aceitam o destino de cobrir largos
horizontes com suas folhagens. Ser homem é precisamente ser responsável. É
experimentar vergonha em face de uma miséria que não parece depender de si. É
ter orgulho de uma vitória dos companheiros. É sentir, colocando a sua pedra, que
contribui para construir o mundo.
SAINT-EXUPERY,
Antoine de – Terra dos Homens. 27. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.
38-44.
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