quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

S E R E N A T A S


Fotos de serenata feita em 28/07/2006
(música de Ildefonso Dé Vieira)
A serenata faz parte da vida da cidade.
Vários seresteiros guidovalenses cantaram para as suas amadas.
Em alguns casos, especiais, cantaram também para as namoradas de seus amigos, com o consentimento dos mesmos, como se fossem um Cyrano de Bergerac dos tempos atuais.
Inúmeros conterrâneos sobressaíram nesta arte de conquistar os corações das moças guidovalenses.
Lembraremos de alguns, na certeza de que esqueceremos de muitos, sempre por ignorância, nunca por má fé.

No início do século XX:
- Francisco Avelino da Silva (Chico do Padre), Zé Boiota, Zé Afra (irmão da Vó Elisa) e as suas filhas

Na década de 50 e 60 e até mesmo 70 :
- Sô Nilo (Petronilo Silva), Odilon dos Reis, João Queiroz (Queiroz do Pinho), Zé Manga Rosa, José Occhi (BIJICA), Landinho Estulano, Sô Lau, Vicente do Dario, Jeová, Bebeto Ramos, Josias do Pombal, Zé do Gil, Zé Bento.

Na década de 60 :
- Marcus Cremonese, Ronaldo Ribeiro, Oscar Matos, Vanderlei Vieira, Fabiano (Bim do Manezim)

Na década de 70:
- Wilton Franco, Cláudio do Chiquito, Jorge Sobral Venâncio, Virgilinho, Dé do Zizinho, Joel do Coutinho, Tarcísio Cusati, Álvaro e José Joaquim Nogueira, .


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Perdeu quem não ouviu o saudoso Zé Vieira ( Xará ), trabalhador braçal do DER - MG tocando a sua flauta feita de talo de abóbora.
Atualmente, um bom local para se ouvir uma boa música, é a casa do Virgilinho, filho de D. Maria do Carmo e o saudoso Virgílio do Posto.
A família toda canta, destacando-se as irmãs Carminha e Dalva, o sobrinho Marquinhos.
Dando sorte, isto se você for convidado, ainda pode aparecer o primo Cristiano (JUCA do Benjamim) , com sua linda voz.
Se junto estiver o Ézio, pode-se considerar uma pessoa de sorte.
Predestinado será, se presente estiverem os seus tios Ruth e Nilso Cremonese.
O Mundico ( Tio do Cristiano ) um grande musicista, aparece raramente. Atualmente, não canta, não toca, mas presta uma atenção...
Isto sem contar a cerveja gelada, um boa pinga e tira-gosto a vontade.
Abaixo, transcrevo texto do poeta e designer Marcus Cremonese sobre as serenatas em Guidoval.


E por falar em serenata...

Marcus Cremonese de Sydney, Austrália




"Poetas, seresteiros, namorados, correi,
É chegada a hora de escrever e cantar
Talvez as derradeiras noites de luar"
(Gilberto Gil)
Menino ainda eu era levado para Guidoval por meus pais para as férias escolares de julho. E algumas vezes para as de fim de ano. Mas julho, o frio mês de julho, era a época em que eu invariavelmente estava por lá.
Dentre todas as coisas boas que acontecem em férias me lembro bem de encontros musicais em casas de pessoas. Não se chamavam mais “saraus”, como nos livros da escola. Eram o que chamamos hoje nos meios jazzísticos de “jams sessions”: um grupo de pessoas se reúne com seus instrumentos, sem prévios ensaios, e tocam o que lhes dá na cabeça, na hora. Essas jams aconteciam ali, nos dias pré-televisão. Algumas vezes na casa da minha avó Jovita, cujo marido — o Chico do Padre, a quem não conheci — tocara com seus amigos no cinema… mudo, evidentemente, pois isso já faz tempo.
Rolavam jams na casa do doutor Mário Meirelles, muitas na casa do Dario, meu tio, cuja mulher, tia Dadá, tocava todos os instrumentos encontráveis na cidade (evidentemente em Sapé não haviam oboés, requintas, ou harpa, mas se esses existissem ela certamente os tocaria). A família do Chico do Padre carrega genes musicais muito fortes. Por isso em todas as casas de meus tios e tias havia pelo menos um violão ou bandolim (para não falar no contrabaixo do Mundico, que atiçava a minha curiosidade, escondido que vivia debaixo de uma capa de pano. Mundico abandonara o instrumento. Nunca lhe perguntei por quê mas isso já aconteceu comigo mais de uma vez. Largo o violão de lado por uns tempos, desinteressado, desmotivado, depois pego de novo. Mas, claro, nunca paro de ouvir música).
Esses encontros, como dizia, aconteciam nas salas das casas. Mas uma vez ou outra, lá pelas tantas, alguém sugeria e o grupo saia para para a rua, para tocar na janela da casa de um ou outro músico que não pôde comparecer. A jam então virava uma serenata propriamente dita, ao ar livre, como deve ser. Vim conhecer o termo seresta mais tarde e fora do âmbito do Sapé.
O frio de julho contribuía para manter as pessoas dentro de casa. Dessas serenatas, uma me ficou guardada para sempre. Eu devia ter já uns 14 anos e dela fizeram parte o Sô Odilon, Sô Nilo, Zé Mendonça, meus pais, o Bijica, as filhas da tia Maria do Carmo, o Adão do Juca Alfaiate… A essa se ajuntou um bando de gente, lá perto da igreja, altas horas da noite. Como se um concerto tivesse sido anunciado. Um frio danado mas todo mundo ali, magnetizado por aquela serenata — inclusive o Zé Mendonça, que volta e meia fazia uma molecagem. Mas se comportou.

Bossa e serenata
Caso à parte era a barbearia do Sô Nilo, onde as reuniões eram regulares e constantes. Essas, o Dé já descreveu magistralmente em vários outros de seus escritos. Recentemente o Fabiano Avelino, filho de outro tio meu, o Manuelzinho do Chico do Padre, discorreu longamente sobre a barbearia do Sô Nilo em brilhante monografia apresentada à UFF. A música feita na barbearia era excelente aperitivo para uma serenata mais tarde, quando a última luz das casas do Fundão se apagava.
Mesmo vindo de uma família portadora dos tais genes musicais, só resolvi aprender violão lá pelos 17, 18 anos. Por obra e graça da Terezinha do Sô Odilon Reis, grande amiga e inspiradora. Ao mesmo tempo o Fabiano também se iniciava nesse instrumento, aprendendo com o Sô Nilo. Adolescentes, talvez não nos sentíssemos confortáveis nas rodas dos músicos “mais velhos”, a quem respeitávamos, naturalmente. Ou talvez não nos sentíssemos seguros o bastante entre eles, como principiantes. Mas, no fundo, o gênero de música que surgia, a Bossa Nova, não era largamente aceito — não só isso: A Bossa Nova era controversa, polêmica, olhada por muitos até com desdém. Mas eu caí de cabeça nela. Botava pra rodar meus LPs do João Gilberto e os “perseguia” no violão até aprender a acompanhar.
Naqueles anos havia a noite fria, calada, as luzes mortiças que o Benjamin da Força e Luz acendia ao anoitecer. Dez horas da noite no Fundão, em dia se semana, o máximo que se encontrava era um ou outro bêbado retardatário voltando pra casa. Nem cachorro vadiava naquela e nas outras poucas ruas, todas de terra, todas desertas àquela hora.
Em recente conversa ao telefone com minha mãe, concluí que a origem das serenatas no Sapé deve remontar aos anos da sua fundação, talvez. A minha mãe, Ruth da dona Jovita, se lembra de ter saído em serenatas com seu pai ainda menina. Quando ele morreu ela estava com 11 anos de idade (hoje tem 86). Saiu de Guidoval em 1936 é só voltou lá regularmente por volta de 1940, quando se casou. E trouxe a tiracolo o meu pai, Seu Nilso, músico dos bons que tocara na PRB-3 de Juiz de Fora, para mais serenatas, naturalmente.
Fabiano e eu começamos a fazer as nossas ali pelo início dos anos sessenta. Era todo um ritual excitante. Primeiro, esperar a cidade dormir. Principalmente esperar a Vó Jovita dormir (levava uma eternidade…). Como ficávamos na casa dela, de vez em quando e por puro zelo, altas horas da noite ela vinha dar uma olhada no quarto, cuidando do nosso repouso. O jeito então era fazer nossos “corpos” com roupas e travesseiros, colocá-los em cima da cama e cobri-los com o cobertor “até a cabeça”… ela olhava e ia embora feliz. Já a única maneira silenciosa de entrar e sair de casa à noite, com aquelas fechaduras velhas e barulhentas, era pulando a janela…
Minhas serenatas com o Fabiano invariavelmente começavam lá no Sacramento, em frente à casa da tia Maria do Carmo. Em geral, tanto as primas como as outras garotas se limitavam a ouvir caladinhas dentro de casa. Muitos pais virariam bicho se imaginassem suas filhas falando pela janela com "vagabundos", e de madrugada. Mas ali, a Dalva, a Carminha e a Vera com freqüência quebravam o silêncio e faziam seus pedidos, caso a gente fosse saindo de fininho e se esquecendo de alguma música favorita. Tio Virgílio fingia-se surdo.
Não havia uma rota pré-estabelecida, mas todas as moçoilas eram contempladas com a nossa música. Do Sacramento o Fabiano me puxava pra Rua 5 de julho, a meio caminho do Vai-e-Volta, pois ali ele tinha um “cravo encostado”…
Em recente troca de e-mails com o Fabiano, mencionei este detalhe e ele me respondeu nessas palavras:
“Quanto ao "cravo encostado" na rua 5 de julho, caso não seja anti-ético citar publicamente o nome da pessoa, sempre me orgulhei do amor primeiro que dediquei à Miriam, filha da dona Luzia Reis. Não deu em nada, mas o amor é mesmo assim, não tem estação de chegada. Continuo então até hoje curtindo essa indescritível viagem que Deus me proporcionou. Sobrou, não esqueçamos, uma fissura na borda do meu violão, resultado de um tombo que levei na calçada da casa da minha amada, da minha musa idolatrada”.
Não, Fabiano, o amor nunca é antiético. Antiético é o ódio, é a guerra. O amor é vida. E suas palavras vão publicadas aí em cima.
Andávamos devagar, a pé, perambulando por toda a cidade. Era uma terapia. Eu dava asas aos pensamentos, respirava um ar frio e puro, cheirando a poeira e capim molhado, cheiros de noite. Anotava em pedaços de papel algum verso que brotava, para ser plantado em algum poema, mais tarde. Longe das janelas das musas, entre um gole e outro do cobertor de garrafa, a gente parava, comentava os erros e acertos da janela anterior, memorizava o repertório, planejava a nova parada. Havia damas que durante o dia nos encomendavam alguma música em particular, e seria um grande “furo” deixar de atender.
Também não é "antiético" citar aqui um Blue Moon que me foi pedido, sussurrado de dentro de uma janela. E eu — que vergonha! — não sabia tocar. Fiquei devendo. Passaram-se os anos. Hoje eu toco essa música com um arranjo mais para blues. Evidentemente aquela serenata e a tal donzela me vêm à cabeça. Assim, quando hoje canto Blue Moon o faço atendendo àquele pedido distante — antes tarde do que nunca.
O gênero intimista da Bossa Nova, embora eu só viesse a pensar nisso anos mais tarde, já estava se sedimentando ali; éramos dois, cada um com um violão, mas não tocávamos ao mesmo tempo, juntos, como nas jams que nos antecederam ou nos gêneros que se seguiram, como as rodas de pagode. Cada um cantava e se acompanhava, revezando as músicas. Nunca nos perguntamos por quê, era um acordo mudo, natural, espontâneo.

O silêncio e a guerrilha
Uma das preocupações era não fazer barulho, nem ao caminhar, e não dar a menor impressão de algazarra ou zoeira. Houve vezes em que um ou outro amigo se juntou a nós dois, como o Ronaldo Ribeiro, ardoroso fã de João Gilberto, e o Oscar Matos, com seu luzidio trumpete. Uma vez apenas, por sugestão de alguém e por precaução, avisamos a um delegado de fora, recém-empossado, que iríamos fazer serenata. Nessa noite sentimos algo estranho; a serenata com autorização perdeu a autenticidade.
A serenata é uma forma de guerrilha urbana e noturna. Exige preparo e agilidade para enfrentar pais de meninas, cães de guarda — e até delegados. Mas o encanto da conquista é indescritível e vale qualquer luta: é sabermos que pelo menos a nossa música "dormiu" aquela noite com uma donzela indefesa, enclausurada!
Nossas serenatas eram urbanas. Só tempos mais tarde, com a ajuda do Vanderlei Vieira, que andou saindo com a gente, é que deixamos o perímetro da cidade e fomos, de camionete, bater lá prás bandas do Sô Isaias Geraldo… temos assim certa “culpa” no casório do Vanderlei com a Imaculada. Umas duas vezes, do 25 para 26 de julho, véspera da grande festa da padroeira, acabamos a serenata seguindo a alvorada da banda, às cinco da manhã, regida pelo Zé Negueta. E numa dessas alvoradas, o Zé Frenderracha, tocando pratos, se distraiu olhando para nós, no momento em que os músicos pararam. Deu de peito nas costas do músico da frente e os pratos caíram. Na Rua de Santa Cruz, a única então calçada. E eu completei, numa explosão de riso e carinho: — solo de prato não vale, Frenderracha!
Cada serenata era um “causo” à parte. E meu relacionamento musical com o Fabiano foi rico em situações hilariantes. Uma delas: fim de julho eu voltava para Juiz de Fora. O aniversário do Fabiano é no princípio de agosto. Tio Manuelzinho comprara para ele o sonhado violão novo. Mas guardou-o, escondido, para só ser dado no dia do aniversário. Uma tortura para o pobre do meu primo, que tinha que tocar no violão velho enquanto eu estivesse por lá. Me lembro do seu desabafo: —“Marquinho, tou igual a São José: a cavalo e andando a pé”. Entrou em cena o bom senso, o pragmatismo, ou lá o nome que tenha. Toda noite o Fabiano “roubava” o violão do esconderijo do pai e saíamos para a serenata. No dia do aniversário, muito “surpreso” e contente, o Fabiano ganhou o violão novo e lhe deu o nome que tem até hoje: "São José". O mesmo que caiu na calçada da rua 5 de julho. Está lá nele a borda de madeira escalavrada que não me deixa mentir…
Já que nunca morei em Guidoval eu poderia cometer injustiça se, para concluir, fosse fazer uma lista das pessoas que mantiveram a serenata como um símbolo das noites de Guidoval — Diamantina fez da serenata o seu "apelido" oficial muitos anos atrás. Consultando o Dé posso com segurança registrar alguns nomes, muitos dos quais eu mesmo vi e ouvi nos tempos de criança, outros ouvi falar: Zé Afra, esposa e filhas, Zé Manga Rosa e o tio Zé Boióta, Zé Vieira (Xará), Zé Bento, Zé do Fio (Barão), Zé do Gil, João Vieira de Queiroz, Jeová, Sô Lau, Josias do Pombal, Bebeto Ramos, Landinho Estulano, Domingos Coelho, Alonso do Brás Bentin, Vicente do Dario, Edgard (Patachoca), Sinval Padeiro, Renatinho, Prof. Salim, Prof. Antônio Barbosa, Cláudio do Chiquito Galdino, Dr. Wilton Franco, Dr. Jorge Sobral Venâncio, Henrique da Amélia do Natalino Reis, mais a voz possante do Zé Cristiano. Outros, embora não fossem músicos, eram figuras constantes, como Jésus Fernandes, Joel do Coutinho, Cléber Oliveira, José Joaquim e Álvaro Nogueira, Tarcísio Cusati, Zagão do João Matos, Zequinha do Pedro Dias, para citar alguns.
Sei que Dé do Zizinho, Virgilinho e seu irmão Luís, mais uma boa dúzia de rapazes dos listados acima continuou mantendo viva a serenata, esse bem cultural que atravessou gerações. No entanto a globalização — como um dos cavaleiros do apocalipse — vem galopando impiedosa, padronizando gostos e impondo a cultura do medíocre, fundamentada no consumismo. Não sou um fundamentalista que prega o banimento de novas expressões artísticas — nem mesmo algumas formas "artísticas" de indústria cultural, que surgem ao correr do tempo. Acho apenas que essas não deveriam simplesmente substituir uma outra, como a serenata. Triste — mas não surpreso — soube que até o funk derrubou a marchinha de carnaval em muita cidade do interior, nesse fevereiro passado!
Conclamo, portanto, a nova geração de "guerrilheiros" do Sapé a se unirem.
Não entreguem a rapadura, ou seja, não deixem a coisa chegar ao que Gil, de forma poética/profética, temia — porque antevia — lá pelos anos 60: "…talvez as derradeiras noites de luar."



Álvaro Nogueira, Dé Vieira, Virgílio Oliveira, Cláudio do Chiquito e Sinval (Natal de 1971)
Álvaro Nogueira, Dé Vieira, Virgílio Oliveira, Cláudio do Chiquito e Sinval (Natal de 1971).

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