Café de rapadura
escrito por Maria José Baía Meneghite
Já se passaram muitos anos e como diz o ditado popular “muita água já rolou debaixo da ponte,” mas o cheirinho daquele café ainda posso sentir, como se estivesse sendo coado aqui na minha cozinha.Engraçado como certas lembranças se apossam da gente e por mais que o tempo passe sempre estarão conosco.Lembro-me perfeitamente quando o ônibus parou na pequena cidade de Guidoval deixando alguns passageiros e, entre eles, minha tia Alaíde e eu, na época com oito ou nove anos mais ou menos.Como toda criança daquela idade,olhei em volta um pouco assustada e curiosa, pois a cidade de Guidoval era praticamente composta da uma rua principal e algumas ruelas de chão batido,muita poeira e uma minúscula população.Seguimos pela rua principal e chegamos à casa da tia Dagmar, que nos recebeu com um sorriso e o carinho de sempre.Ali pernoitamos, descansei e até brinquei um pouco naquela casa alta, espaçosa. No dia seguinte, despedimo-nos e seguimos a pé em direção ao povoado de Ribeirão Preto. Nunca pensei que fosse capaz de andar tanto.
O que para minha tia era um trajeto de recordações, um caminho aprazível, para mim era uma estrada interminável.
Hoje posso perfeitamente avaliar como era importante para ela pisar aquele chão, sentir o cheiro da terra que a viu nascer, falar com as pessoas conhecidas.
Era o único lugar onde ela realmente gostava de visitar e passar alguns dias, uma vez que sua vida limitava-se ao trabalho cansativo em sua máquina de costura.
Sair da cidade onde morava para ir ao Ribeirão Preto era deveras um retorno as suas lembranças da juventude, um verdadeiro caminho de recordações e de muita saudade. Essas coisas só podemos compreender com o passar do tempo, quando a saudade nos faz lembrar o que vivemos e às vezes o que deixamos de viver.Enfim, voltando à caminhada, devo dizer que cheguei bastante cansada ao nosso destino. A noite já se fazia anunciar pela revoada dos pássaros em busca de um abrigo.
Um vento frio batia no meu rosto querendo levar-me junto às folhas que rolavam pelo caminho estreito onde seguíamos. As árvores curvavam-se como se fizessem reverência à tempestade que se anunciava.Tudo o que eu queria era abrigar-me assim como faziam os pássaros. Apertamos o passo.
Logo avistamos o casarão do Sr. José Miguel, as plantações e tudo o que compunha aquela pequena propriedade onde passaríamos dois ou três dias. Chegamos antes da chuva e não demorou muito para que nos instalássemos na enorme cozinha de D. Fia, amiga de minha tia.Enquanto colocavam a conversa em dia, muito esperta D. Fia ia preparando o jantar, perguntando sobre meu pai, minha mãe e os irmãos. Fazia brincadeiras comigo que de cima de um banquinho de madeira observava tudo e espantava-me com o tamanho daquele fogão a lenha no centro da cozinha, parecendo um dragão soltando fogo e calor por todo lado.
Em dado momento ela ,D. Fia, me ofereceu um café, servido numa canequinha de folha de lata,(acho mesmo que tal utensílio nem existe mais) e eu bebi como se fosse o néctar dos Deuses.Disse-me em seguida ser um café diferente do café da cidade, pois era adoçado com rapadura.Era realmente diferente.
Eis aí o sabor que ainda sinto, que tenho carregado comigo pela vida afora. Um sabor só encontrado nos caminhos de Guidoval, terra onde também nasci, onde nasceram meus pais e que sempre terá alguém como D. Fia, como a tia Dagmar, para oferecer abrigo, carinho e um café de rapadura com um sabor diferente ....um sabor de saudade.
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O delicioso texto acima foi escrito pela conterrânea Maria José Baía Meneghite e publicado em 06/10/2009 no Portal de Notícias na internet do "Jornal Leopoldinense" no site
2 comentários:
Olá Maria José,
Agora é a minha vez de me encantar com o seu texto.
Com certeza três coisas se destacam nele para mim: primeiro a lembrança de onde passamos a infância e a adolescência. Tal como a sua tia, toda vez que retorno a Guidoval (e faço isto com certa frequência), pouco tempo depois de deixar as bagagens na casa da minha tia Gildinha, viuva do meu tio Mario marotta, faço um circuito quase total pela cidade. Ela mora na Praça Santo Antônio e de lá vou até o fim da Rua Santa Cruz e volto subindo até passar em frente à Igreja de Santana em direção à rua do Vai e Volta. Retornando, desço o morro do Sô Trajano e vou pela rua do Sacramento passando em frente o Centro Espírita, bem na sua calçada. Isto porque, quando era criança, o Pároco de então, o Padre joão Chrisóstomo, muito amigo da minha família e de toda a criançada, era um ferrenho combatente do espiritismo, e assim eu me sentia em pecado só de passar naquela calçada. Hoje, com certeza não penso assim.
De volta sigo pelo Fundão, vou à Rua do Campo, do outro lado da ponte e retorno à casa da minha tia.
Esse circuito demora cerca de umas duas horas apesar de a cidade ainda ser tão pequena. Porém, a cada momento encontro um antigo conhecido ou entáo sou abordado por alguém que se aproxima e me pergunta se sou filho do Dr. Mario,dada a minha aparência, que foi médico por muito tempo na cidade.
Em segundo lugar, falou da D. Dagmar, que também me lembra a família muito amiga do Sr. Otaciano, o Glenarvan, o Ivo, o José, a Diná e aCiomar.
Em terceiro, o Ribeirão preto, a que me referi no meu texto sobre o Elpídio, e que me encantou na exposição belíssima do Dr. Edson Cattete, descrevendo a saga dos negros que fundaram aquela localidade.
Por fim, o tema da sua crônica, que também me traz tal lembrança. Mas, não fico só na lembrança: de vez em quando faço aqui em casa, em Brasília, o saboroso café de rapadura. Só não tenho fogão a lenha, o mancebo e coador de pano. Mas esse complemento fica com a lembrança.
Um grande abraço
Plinio
Dr. Plinio,
Li seu comentário e fiquei com vontade de percorrer as mesmas ruas,só que não terei a felicidade de encontrar muitos conhecidos pois devido a ausência(algumas décadas) serei uma "completa desconhecida".Este é o preço que se paga pela ausência.Quem sabe apareço por lá qualquer dia desses?
Um grande abraço
Maria José Baía Meneghite
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