A missa negra
(Elio Gaspari em “A
Ditadura Envergonhada)
Às
dezessete horas da sexta-feira, 13 de dezembro do ano bissexto de 1968, o
marechal Arthur da Costa e Silva, com a pressão a 22 por 13, parou de brincar
com palavras cruzadas e desceu a escadaria de mármore do Laranjeiras para
presidir o Conselho de Segurança Nacional, reunido à grande mesa de jantar do
palácio. 1 Começava uma missa negra. Composto por ministros
demissíveis ad nutum, o Conselho
sempre fora uma ficção. Suas decisões, sem a chancela do presidente, nada
valiam. Sua competência legal para tratar da matéria levada à suposta consulta
era nula.
O
marechal deteve-se na porta do salão, conversando baixo com o vice-presidente
Pedro Aleixo, que acabara de chegar de Belo Horizonte. Demoraram-se por quase
meia hora. Quando Costa e Silva ocupou a cabeceira da mesa, cada ministro tinha
uma cópia do Ato Institucional nº5 em frente a seu lugar. Dois microfones,
colocados ostensivamente sobre a mesa, gravariam a sessão. A sala estava tomada
pelo barulho de sirenes de veículos que circulavam no pátio da mansão.
O
presidente abriu a sessão com um discurso em que se denominou "legítimo
representante da Revolução de 31 de março de 1964" e lembrou que com
"grande esforço [...] boa vontade e tolerância" conseguira chegar a
"quase dois anos de governo presumidamente constitucional". Ofereceu
ao plenário "uma decisão optativa: ou a Revolução continua, ou a Revolução
se desagrega". Batendo na mesa, anunciou que "a decisão está
tomada" e pediu que "cada membro diga o que pensa e o que sente"
2 . Era o primeiro discurso
desconexo daquela sessão presidida pela determinação de proclamar uma ditadura.
O marechal suspendeu a reunião por vinte minutos, para que cada ministro lesse
o texto, e desculpou-se pela pressa. Com um preâmbulo de seis parágrafos, o Ato
tinha doze artigos e cabia em quatro folhas de papel. Sua leitura atenta exigia
pouco mais que cinco minutos. Costa e Silva retirou-se debaixo de aplausos.
Na
volta, deu a palavra ao vice-presidente Pedro Aleixo, respeitado liberal da UDN
mineira, conhecido tanto pela sua retidão como por uma solene tibieza. Sereno e
com elegante pronúncia, Pedro Aleixo falou como se estivesse numa sala de aula
da faculdade de direito. Defendia simultaneamente o regime constitucional e sua
biografia. Mais esta que aquele. Começou ensinando que a Câmara só poderia ter
dado a licença para processar Marcio Moreira Alves se agisse com base num
critério político, pois não poderia fazê-lo "segundo as normas do direito
aplicáveis ao caso". Ou seja, o "insólito agressor da dignidade dos
elementos componentes das Forças Armadas" não podia ser processado pelo
conteúdo de um discurso proferido da tribuna. O vice-presidente declarou-se
favorável a um remédio constitucional - o estado de sítio - e denunciou o
conteúdo do Ato que acabara de ler: "Da Constituição, que é antes de tudo
um instrumento de garantia dos direitos da pessoa humana, e da garantia dos
direitos políticos, não sobra [...] absolutamente nada". "Estaremos
[...] instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura."
Falara
o respeitado bacharel, mas cabia ao vice-presidente concluir. Com a ditadura na
mão, prosseguiu: "Todo ato institucional [...] que implique na modificação
da Constituição existente, é realmente um ato revolucionário. Que se torne
necessário fazer essa revolução, é uma matéria que poderá ser debatida e
acredito até que se pode demonstrar que essa necessidade existe". Admitiu
que se o estado de sítio viesse a se mostrar insuficiente, "a própria
nação [...] compreenderia a necessidade de um outro procedimento".
Despediu-se reafirmando obliquamente sua discordância e, dirigindo-se a Costa e
Silva, anunciou sua "certeza de que estou cumprindo um dever para comigo
mesmo, um dever para com Vossa Excelência, a quem devo a maior
solidariedade". Em nenhum momento Pedro Aleixo disse diretamente que
condenava a promulgação do Ato. O bacharel denunciou a ditadura, mas nela se
manteve vice-presidente.
"Acabamos
de ouvir a palavra abalizada do vice-presidente [...], da qual discordo
absolutamente", emendou o almirante Augusto Rademaker, ministro da
Marinha. Era expoente da linha dura na Armada. Militante integralista nos anos
30, membro do comando revolucionário de abril de 1964, tomara dois dias de
cadeia durante o mandato de Castello por ter criticado o governo. 3
Ganhara o cargo depois de ter passado dois anos numa escrivaninha de adido ao
gabinete do ministro. "O que se tem que fazer é realmente uma
repressão", acrescentou. O marujo foi às águas do direito constitucional e
argumentou que "o recesso, a meu ver, não requer estado de sítio, por
enquanto". Naufrágio, pois pela Constituição ainda vigente o estado de
sítio nada tinha a ver com o recesso parlamentar, que nem sequer poderia ser
decretado durante sua duração.
Entrou
o ministro do Exército, Lyra Tavares: "Nós estamos agora perdendo
condições [...] de manter a ordem neste país". 4 E ameaçou:
"É preciso assinalar que foi com grande sacrifício que as Forças Armadas,
particularmente o Exército, guardaram até aqui, como fato inédito na história
política do Brasil, o seu silêncio, à espera de uma solução, e convencidos -
todos os quadros - de que não pode deixar de haver essa solução".
Costa
e Silva deu a palavra "por ordem de antiguidade" ao chanceler
Magalhães Pinto. Pelo cerimonial da República, o ministro da Justiça tem
precedência sobre os demais. O presidente pulara Gama e Silva. Magalhães
percebeu a astúcia e lamentou que o ministro não tivesse falado antes,
explicando sua obra. O chanceler vivia um desconforto biográfico. Em 1943
assinara o Manifesto dos mineiros,
primeira manifestação da elite liberal contra a ditadura de Getulio Vargas.
Estava pronto para assinar o Ato de Gaminha, mas tentava ganhar tempo. "Eu
também confesso, como o vice-presidente da República, que [...] nós estamos
instituindo uma ditadura. E acho que se ela é necessária, devemos tomar a
responsabilidade de fazê-la. Eu não conheço bem, dentro do mecanismo
constitucional [...] se o que resta caracteriza mesmo essa ditadura. Acho que
ainda é tempo de alguma coisa ser feita para evitar". 5 Magalhães
concluiu que "devemos fazer um ato institucional", "procurando
colocar nele o essencial", e sugeriu que seria útil "um debate
privado entre aqueles que fizeram o Ato e aqueles que podem dar uma
contribuição jurídica [...] porque devemos ter um Ato o mais jurídico possível,
e resguardar os direitos do cidadão também o mais possível".
O
ministro da Fazenda pisou no acelerador. Antonio Delfim Netto, um menino do
Cambuci, ex-contínuo da Gessy, formado na Universidade de São Paulo, lapidado
na assessoria da Confederação Nacional da Indústria, ainda era um ministro sem
muito destaque, mas viu longe. Queria que a concentração de poderes pedida por
Costa e Silva desse ao governo mão livre para legislar sobre matéria econômica
e tributária: "Estou plenamente de acordo com a proposição que está sendo
analisada no Conselho. E se Vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que
creio que ela não é suficiente. Eu acredito que deveríamos atentar e deveríamos
dar a Vossa Excelência a possibilidade de realizar certas mudanças
constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa
realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez".
Seguiu-se
o ministro da Agricultura, Ivo Arzua, ex-prefeito de Curitiba. Foi o voto mais
longo da reunião. A sua audição sugere que ele foi à reunião acreditando que
alguém esperava pelas suas sugestões. É provável que tenha levado um texto, do
qual não conseguiu se desvencilhar. Louvou a "magnanimidade" das
Forças Armadas por não terem resolvido o caso de Marcio Moreira Alves através
de um "desforço pessoal", como ele faria. Agradeceu "a atenção
paternal, os sábios conselhos" de Costa e Silva, citou Churchill como
"grande monumento da última guerra" e deu sua idéia, para embaraço de
vários colegas. Denunciou a Constituição por estar "contra a vontade
nacional", atacou os partidos por "falta de substância
filosófica" e sugeriu a criação de uma "Nova República", com a
dissolução do Congresso e a realização de eleições para uma Constituinte. Foi a
nota cômica e constrangedora da tarde. 6
O
ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, coronel da reserva projetado na
política do Pará em 1964, quando saiu do quartel para assumir o governo do
estado, chamou a reunião de "histórica". Pouco antes, estivera com o
general Portella, que lhe pedira um apoio "forte e breve”. 7
Assim foi: "Sei que a Vossa Excelência repugna, como a mim e a todos os
membros desse Conselho, enveredar pelo caminho da ditadura pura e simples, mas
me parece que claramente é esta que está diante de nós. [...] Às favas, senhor
presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência" .8
O
general Orlando Geisel, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, foi na mesma
linha: "Se não tomarmos neste momento esta medida que está sendo aventada,
amanhã vamos apanhar na cara, senhor presidente”. 9
O
chefe do SNI, general Medici, que pedira um ato institucional na reunião
anterior do Conselho, anunciou que aprovava o texto "com bastante
satisfação".
A
mais audaciosa proposta veio do chefe do Gabinete Civil, Rondon Pacheco, um mineiro
tímido que fizera sua carreira no Congresso à sombra dos veneráveis liberais da
UDN. Começou batendo na ferradura. Atacou a sugestão do estado de sítio.
Mostrou que a Constituição só permitia a suspensão das imunidades
parlamentares, "pelo voto secreto, pelo voto secreto", repetiu, de
dois terços da casa a que pertencesse o congressista. Ou seja, o estado de
sítio não permitiria a cassação de Marcio Moreira Alves. Rondon declarou-se
favorável ao Ato, e Costa e Silva ia passando a palavra ao general Jayme
Portella, quando o chefe do Gabinete Civil, surpreendido pela interrupção,
pediu para continuar. Bateria também no cravo. Contou que já examinara várias
propostas de atos e em todas as ocasiões sugerira "a conveniência política
de se estabelecer prazo para o recesso, bem como um prazo também para o Ato
Institucional, prazo que poderia ser de um ano". A proposta de Rondon foi
a única tentativa real de abrandamento da ditadura.
Quando
a palavra foi passada ao ministro Gama e Silva, o presidente chamou-o de
"responsável direto pela redação do Ato". Fora deixado por último
para descer ao campo de batalha e matar os feridos. Enquanto falava, as sirenes
do pátio pareciam enlouquecidas. Ficou "de inteiro acordo" com a
proposta de Delfim, a qual concedia poderes constituintes ao presidente,
ampliando a profundidade do golpe e dando-lhe um caráter dinâmico que o
transformaria em instrumento de permanente revitalização da ditadura. 10
Rebateu a idéia de Rondon, que limitava a vigência do Ato: "A experiência
demonstra como foi errado ter fixado prazos no Ato Institucional no. 1. Penso
que isto é motivo mais do que suficiente para justificar que este Ato,
outorgado como foi, possa até mesmo ser revogado a curto ou a longo prazo [...]
mas limitá-lo [...] seria incidirmos no mesmo erro do Ato Institucional no. 1,
quando a Revolução se autolimitou".
Costa
e Silva fechou a reunião com uma cruel malandragem. Elogiou Aleixo, pediu a
Deus "que não me venha convencer amanhã de que ele é que estava
certo", mas anunciou ao auditório que o vira confabulando com o vice no
início da reunião: "Quero revelar ao Conselho que Sua Excelência, há
poucos minutos, em confidência [...] apresentou a sua indiscutível
solidariedade às decisões do presidente da República, incorporando-se à sua
própria situação. Isso me trouxe um grande conforto. [...] Sua Excelência
acabou de me dizer que a sorte dele é a minha sorte".
Acabara
o serviço. Por trás do palavrório, a decisão fora produto da vontade de Costa e
Silva. O ministério não se dividiu entre a posição de Pedro Aleixo e o projeto
de ato, mas entre a audácia de um pelotão de fuzilamento e a cautela dos
liberais. O pelotão, articulado por Portella, tinha os ministros militares como
porta-vozes, o chefe do SNI como chefe de disciplina e os ministros Gama e
Silva, Delfim Netto e Jarbas Passarinho como atiradores de elite. Pedro Aleixo,
Magalhães Pinto e Rondon Pacheco tentaram abrandar o golpe, cada um à sua
maneira. Nem coordenaram suas ressalvas, nem sugeriram a hipótese de jogar seus
cargos no pano verde. Se houve correlação entre as idéias que expressaram e a
conduta que assumiram, eles passaram de um regime constitucional a uma ditadura
distraídos como quem vai à igreja para um batizado, erra de capela e entra numa
missa de corpo presente. Diferiam do pelotão de fuzilamento porque aceitavam a
ditadura, enquanto ele a queria.
Quase
vinte anos depois, Antonio Delfim Netto levantou o véu que encobriu toda a
crise de 1968, bem como a reunião do Laranjeiras:
Naquela época do AI-5 havia muita
tensão, mas no fundo era tudo teatro. Havia as passeatas, havia
descontentamento militar, mas havia sobretudo teatro. Era um teatro para levar
ao Ato. Aquela reunião foi pura encenação. O Costa e Silva de bobo não tinha
nada. Ele sabia a posição do Pedro Aleixo e sabia que ela era inócua. Ele era
muito esperto. Toda vez que ia fazer uma coisa dura chamava o Pedro Aleixo para
se aconselhar e, depois, fazia o que queria. O discurso do Marcito não teve
importância nenhuma. O que se preparava era uma ditadura mesmo. Tudo era feito
para levar àquilo. 11
Durante a reunião falou-se dezenove vezes nas
virtudes da democracia, e treze vezes pronunciou-se pejorativamente a palavra
ditadura. Quando as portas da sala se abriram, era noite. Duraria dez anos e
dezoito dias.
Horas
mais tarde, Gama e Silva anunciou diante das câmeras de TV o texto do Ato
Institucional nº. 5. Pela primeira vez desde 1937 e pela quinta vez na história
do Brasil, o Congresso era fechado por tempo indeterminado. 12 O Ato
era uma reedição dos conceitos trazidos para o léxico político em 1964.
Restabeleciam-se as demissões sumárias, cassações de mandatos, suspensões de
direitos políticos. Além disso, suspendiam-se as franquias constitucionais da
liberdade de expressão e de reunião. Um artigo permitia que se proibisse ao
cidadão o exercício de sua profissão. 13 Outro patrocinava o
confisco de bens. Pedro Aleixo queixara-se de que "pouco restava" da
Constituição, pois o AI-5 de Gama e Silva ultrapassava de muito a essência
ditatorial do AI-1: o que restasse, caso incomodasse, podia ser mudado pelo
presidente da República, como ele bem entendesse. Quando o locutor da Agência
Nacional terminou de ler o artigo 12 do Ato e se desfez a rede nacional de
rádio e televisão, os ministros abraçaram-se. 14
A
pior das marcas ditatoriais do Ato, aquela que haveria de ferir toda uma
geração de brasileiros, encontrava-se no seu artigo 10: "Fica suspensa a
garantia de hábeas corpus nos casos
de crimes políticos contra a segurança nacional". Estava atendida a
reivindicação da máquina repressiva. O habeas corpus é um inocente princípio do
direito, pelo qual desde o alvorecer do segundo milênio se reconhecia ao
indivíduo a capacidade de livrar-se da coação ilegal do Estado. Toda vez que a
Justiça concedia o habeas corpus a um suspeito, isso significava apenas que ele
era vítima de perseguição inepta, mas desde os primeiros dias de 1964 esse
instituto foi visto como um túnel por onde escapavam os inimigos do regime.
Três meses depois da edição do AI-5, estabeleceu-se que os encarregados de
inquéritos políticos podiam prender quaisquer cidadãos por sessenta dias, dez
dos quais em regime de incomunicabilidade. Em termos práticos, esses prazos
destinavam-se a favorecer o trabalho dos torturadores. Os dez dias de
incomunicabilidade vinham a ser o dobro do tempo que a Coroa portuguesa
permitia pelo alvará de 1705.15 Estava montado o cenário para os
crimes da ditadura.
Dias
depois da edição do AI-5, Rondon Pacheco telefonou ao ex-ministro Carlos
Medeiros Silva, autor do texto do AI-1, perguntando-lhe o que tinha achado:
"Ora, Rondon, vocês fazem um ato sem prazo e ainda vêm me perguntar o que
eu acho?"16.
As
emissoras de televisão, as rádios e as redações de jornais foram ocupadas por
censores recrutados na polícia e na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais.
Carlos Lacerda, que quatro anos antes agradecera a Deus a chegada dos tanques,
foi levado preso para um quartel, por ordem do general Jayme Portella, para
desagrado do comandante do I Exército, Syseno Sarmento, que acabara de encarcerar
o ex-presidente Juscelino Kubitschek, capturado quando descia as escadas do
teatro Municipal. JK foi levado para uma unidade da Baixada Fluminense, onde o
deixaram num alojamento sujo, com privada sem tampo, sofá rasgado e goteira. 17
Seu amigo Hugo Gouthier, ex-embaixador em Roma, honrava um jantar de grã-finos
quando foi chamado ao telefone e avisado pela empregada de que a polícia o
esperava em casa. Em
1964 escrevera à TV italiana que a derrubada de Jango se destinara a
"neutralizar a ação comunista que ameaçava derrubar as instituições
brasileiras e atentar contra os valores mais sagrados de nossa tradição cristã
e democrática”. 18 Voltou à mesa, terminou a refeição e despediu-se
dos amigos. Acabou no quartel da PM da praça da Harmonia, que guardava o padre
vice-reitor da PUC. 19 Em Goiânia, onde seria paraninfo de uma turma
de estudantes de direito, o advogado Sobral Pinto, que em 1963 denunciara a
bolchevização do país e um ano depois estava no DOPS soltando comunistas, foi
preso de pijama e chinelos, aos 75 anos.20 Levaram-no para uma cela
de quartel.
O
governo que começara sinalizando um interesse na volta dos intelectuais e
cientistas exilados expulsaria das universidades 66 professores, entre eles
Caio Prado Júnior (que não tinha cargo, mas só o título de livre-docente da
USP), Fernando Henrique Cardoso (que conquistara a cátedra de Ciência Política
poucos meses antes), o sociólogo Florestan Fernandes, a historiadora Maria
Yedda Linhares, o físico Jayme Tiomno e o médico Luiz Hildebrando Pereira da Silva,
que deixara uma posição no Instituto Pasteur, em Paris, para organizar o
Departamento de Parasitologia da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto.
Avançou-se
também sobre as novas dissidências. A atriz Marília Pêra, da peça Roda-Viva, foi trancada num mictório de
quartel.21 Caetano Veloso e Gilberto Gil, capturados por uma
patrulha do Exército em São
Paulo, vagaram por unidades militares do Rio. Os dois jovens
atrevidos que cantavam "É proibido proibir", vestiam roupas adoidadas
e usavam cabelos compridos, tiveram a cabeça raspada, foram confinados em
Salvador e exilados para Londres. Na carceragem da Brigada Pára-Quedista,
Caetano compôs:
Eu
quero ir, minha gente
Eu
não sou daqui
Eu
não tenho nada
Quero
ver Irene rir.22
Em
que iria dar isso tudo? Essa era a curiosidade do embaixador americano John
Tuthill. Entre as pessoas junto a quem buscou a resposta estava o general
Golbery. Fósforo riscado, vivia entre sua cadeira no Tribunal de Contas e a
casa de Jacarepaguá. Repetiu o que previra três anos antes. Disse que o regime
não estivera ameaçado e que os generais "estão vendo fantasmas". O
Ato resultara da inépcia de um governo desorientado, presidido por um homem
emotivo que "prefere distrair-se com filmes e conversas despreocupadas com
amigos". Chamou Gama e Silva de "maluco" e Lyra Tavares de
"oportunista". Duvidou das previsões otimistas que antecipavam a
reabertura do Congresso em três meses. Pelo contrário, viriam mais cassações e,
provavelmente, atingiriam o Supremo Tribunal Federal. Não acreditava num surto
de moderação: "Muita gente tem contas pessoais a ajustar".23
Precisamente
um mês depois da edição do AI-5, o coronel João Baptista Figueiredo, ex-chefe
da Agência Central do SNI, então no comando do Regimento de Cavalaria de
Guarda, em Brasília, sintetizava a situação: "A impressão que tenho é que
cada um procura tirar o maior proveito possível do momento porque começam a
perceber a quase-impossibilidade de uma saída honrosa para os destinos do país.
[...] Os erros da Revolução foram se acumulando e agora só restou ao governo
'partir para a ignorância'".24
Notas
de Rodapé
1 Jayme Portella de Mello, A Revolução e o governo Costa e Silva,
p. 653. Para a pressão Hernani d’Aguiar, Ato
5, p. 287.
2 Todas as citações de votos dessa
reunião baseiam-se na fita da gravação. Existe ainda uma Ata da Quadragésima Terceira Reunião do Conselho de Segurança Nacional,
da Secretaria Geral do CSN. Esses dois documentos guardam diferenças. Em alguns
casos trata-se de conseqüência da simples revisão dos votos, proferidos de
improvisos. Em outros – diversos – as divergências são produto de fraude
política. Na fita ouve-se Costa e Silva falar em “governo presumidamente
constitucional”. Na Ata lê-se
“governo decididamente constitucional”. APGCS/HF.
3 Para a militância integralista,
Hélgio Trindade, “O radicalismo militar em 64 e a nova tentação fascista”, em Gláucio Ary Dillon
Soares e Maria Celina d’Araujo (orgs.), 21
anos de regime militar, p. 134.
4 O voto do general Lyra Tavares foi
severamente alterado na redação da Ata.
Em alguns casos isso deveu-se às suas relações hostis com a sintaxe. Em outros
houve maquiagem política. Ele começou dizendo que “também devo declarar, de
acordo com as palavras do ministro da Marinha, que ouvi com grande e merecido
respeito os conceitos de juristas com a responsabilidade de vice-presidente, do
dr. Pedro Aleixo”. Revisto, esse preâmbulo obsequioso transformou-se no
seguinte: “Eu também desejo me declarar de acordo com as palavras do ministro
da Marinha.” APGCS/HF.
5 Na Ata, numa das mais fraudulentas alterações, trocou-se a frase “acho
que ainda é tempo de alguma coisa ser feita para evitar” por “acho que é tempo
de se fazer alguma coisa para acabar com as crises. [...]”. APGCS/HF.
6 Para o constrangimento, Antonio
Delfim Netto, 1988.
7 Depoimento de Jarbas Passarinho, em História do poder, de Alberto Dines, Florestan
Fernandes Jr. e Nelma Salomão (orgs.), vol. 1: Militares, Igreja e sociedade civil, p. 338
8 Na Ata lê-se: “Mas, senhor
Presidente, ignoro todos os escrúpulos de consciência”. APGCS/HF.
9 Na Ata lê-se: “[...] vamos apanhar
na carne”. APOGS/HF.
10
A
sugestão de Delfim teve o apoio expresso de dois ministros: Affonso de
Albuquerque Lima, do Interior, e Orlando Geisel, chefe do Estado-Maior das Forças
Armadas.
11 Antonio Delfim Netto, agosto de
1986, e maio e novembro de 1988.
12 O Congresso foi fechado por tempo
indeterminado em 1823, 1889, 1930 e 1937. Em outubro de 1966, para assegurar a
perda do mandato de seis deputados, Castello fechou-o por um mês.
13 Com
base nesse dispositivo, mais tarde, os jornalistas Antônio Callado e Leo
Guanabara foram proibidos de exercer a profissão. Depois de publicada a
punição, Costa e Silva revogou-a.
14 Depoimento do locutor Alberto Curi,
encarregado da leitura do Ato. O Globo,
11 de dezembro de 1988.
15 Autos
de devassa da Inconfidência Mineira, vol. 2, nota na página 138.
16 Carlos Medeiros Silva, dezembro de
1968. Medeiros foi o redator do texto do Ato institucional propriamente dito. É
do jurista Francisco Campos a autoria de preâmbulo.
17 Para o quartel, Josué Montello, Diário do entardecer, p. 165.
18 Correio da Manhã, 18 de abril de
1964.
19 Hugo Gouthier, Presença, p. 207.
20 Para a denúncia da bolchevização,
John W.F. Dulles, Carlos Lacerda – A vida
de um lutador, vol. 2: 1960-1977, p. 219.
21 Depoimento de Marília Pêra a O Estado de S. Paulo de 11 de dezembro
de 1988.
22 Caetano Veloso, Verdade tropical. pp. 347- 409.
23 Telegrama do embaixador John
Tuthill ao Departamento de Estado, de 3 de janeiro de 1969. Em O
Estado de S. Paulo,
13 de dezembro de 1998. DEEUA.
24 Carta de 13 de janeiro de 1969 do
coronel Figueiredo a Heitor Ferreira. APGCS/HF.