quinta-feira, 9 de abril de 2015

Entrevista com Dr. Marco Bobbio - Fonte: Revista Veja

Entrevista com Dr. Marco Bobbio -  Fonte: Revista Veja

Páginas Amarelas: Moderação e serenidade
Notícia publicada em: 29/11/2014 - Autor: Adriana Dias Lopes

Marco Bobbio, de 63 anos,dirige um dos centros de referência em cardiologia da Itália, o hospital Santa Croce e Carie di Cuneo, no Piemonte. Ele se notabilizou entre os colegas de todo o mundo por ter colocado na dimensão correta a atual obsessão pela preservação da juventude a qualquer custo. Do pai, o filósofo Norberto Bobbio, morto em 2004, um ícone do pensamento liberal e da defesa dos direitos individuais, Marco herdou a inteligência e a ironia cortante com que postula suas teses. "Meu pai dizia que o homem de cultura é aquele que valoriza a dúvida. É o que faço diariamente exercendo a medicina."
Antes de embarcar para o Brasil, onde lançará nesta semana o livro O Doente Imaginado, Marco Bobbio falou a VEJA, por telefone, de sua casa em Turim.

A medicina preventiva é um ramo com muitas histórias de sucesso para contar, mas ainda não o convenceu totalmente. Por quê?
Há um exagero nas medidas que visam a evitar o aparecimento das doenças. O médico deveria intervir menos e esperar mais o curso natural das coisas. Acredito nas intervenções em situações agudas, como no caso do paciente vítima de um infarto ou um derrame. Desconfio um pouco das medidas a longo prazo. Os tratamentos da medicina moderna fazem com que as pessoas vivam mais. Vive-se mais, mas não se vive tão bem. São pouquíssimas as pessoas que chegam a uma idade avançada sem problemas. A vida se prolongou. Mas o mal-estar associado ao envelhecimento também. Não há cura para esse mal-estar. É o que chamo de "paradoxo da medicina". Vejo pessoas com 85 ou 90 anos dizendo que estão cansadas. Elas estão mesmo é idosas.

Como harmonizar sua tese com a promessa da medicina de fazer pelo paciente tudo o que estiver ao alcance?
Os cuidados preventivos podem levar uma pessoa até os 90 anos com o sistema cardiovascular funcionando muito bem. Mas eles não eliminam por completo todos os problemas associados à idade avançada, como a dificuldade de locomoção, a perda de memória, o cansaço. A tecnologia dos exames e o aprimoramento dos medicamentos são dois dos muitos recursos capazes de manter uma pessoa viva por muito mais tempo, mas ainda não foi possível desenvolver mecanismos que possam proporcionar qualidade de vida aos pacientes em idade avançada.

Uma mulher de 50 anos descobre no check-up anual que tem um câncer de mama em fase muito inicial. Nessas circunstâncias, a probabilidade de cura ultrapassa 90%. Sem medidas preventivas ela estaria condenada, não?
O rastreamento do câncer de mama é um dos poucos exames que têm provado sua eficácia preventiva. Nesse caso hipotético, é inegável que a prevenção foi decisiva. O problema é quando os médicos não respeitam os valores e as necessidades do paciente, acreditando que o que eles oferecem é sempre o melhor. Não se pergunta nem mesmo o que o paciente quer. Muitas vezes a questão é dar a ele o direito de não seguir um determinado tratamento, se essa for a sua vontade.

Conhecer o risco de desenvolver uma doença, por menor que ele seja, não ajuda o paciente a organizar a vida?
Isso seria verdadeiro se, ao descobrirmos a doença, fôssemos capazes sempre de eliminá-la. Raramente é possível mudar a história de uma doença, esse é o ponto. As dificuldades começam pelos exames que identificam o problema. Os pacientes acreditam que os exames dão sempre uma resposta definitiva. O tumor é benigno ou maligno? A placa de gordura vai se expandir ou não? Todo e qualquer exame tem o chamado resultado falso negativo ou falso positivo. No caso do falso negativo, o paciente vai para casa tranqüilo, quando, na verdade, pode ter mesmo um câncer. Ou então. quando o exame confirma a doença, o paciente se submete a inúmeros procedimentos invasivos e, possivelmente, a um procedimento mutilador. Há um excesso de determinismo na prática da medicina atualmente.

Um em cada cinco exames, em média, dá resultado falso positivo ou falso negativo. Esse número é altíssimo, não?
A taxa de falsos positivos e falsos negativos depende do tipo de exame, da forma como ele é aplicado e das condições de sua realização. Uma regra para saber se vale a pena se submeter a um exame de detecção precoce é conhecer os dados globais de sua eficácia. A mamografia e a colonoscopia, que detecta o câncer colorretal, têm sua eficácia comprovada por esse critério.

A expectativa dos pacientes em relação à medicina é demasiadamente alta?
Sim, e essa postura é alimentada pelos próprios médicos. Não é incomum ver profissionais renomados declarar para revistas, jornais e televisão sua onipotência, divulgando feitos extraordinários. Por exemplo, o cirurgião que recuperou um paciente em condições desastrosas depois de uma operação de dez horas de duração. Claro que isso pode acontecer. Mas não é o comum. Esse médico, então, passa a ser visto como um salvador, quase um ente divino. Pode acontecer também de um paciente morrer na mesa de cirurgia ao ser operado de apendicite. Também é incomum. Excluindo-se aqui o erro médico, há o imprevisto, a fatalidade. O imponderável. Saber lidar com isso é saudável porque faz o médico não se sentir Deus — e errar menos. A medicina não é uma ciência exata. É uma ciência biológica que tem de lidar com características muito particulares e complexas.

Qual o pecado mais evidente dos médicos atualmente?
Os médicos estão muito arrogantes, impondo seu ponto de vista a todo custo. Parte da culpa é das subespecializações médicas, um fenômeno recente na medicina. Elas são necessárias para a compreensão mais aprofundada de uma doença, mas, quando o médico se concentra em uma pequena porção de uma determinada afecção, passa a ver o paciente de forma fragmentada. Os médicos atualmente só sabem falar de questões referentes às suas subespecialidades. Não do paciente. A postura dos especialistas é comparável à dos socialistas, para quem só há uma única solução para um problema — ela é perfeita, e não tem discussão. Hoje em dia exames e tratamentos são determinados pelos estudos científicos, sem maiores reflexões. Se um paciente sofre um infarto em São Paulo, em Nova York ou na índia, é tratado basicamente da mesma forma. São, evidentemente. boas abordagens, mas que funcionam bem com a média da população. Quando o paciente procura ajuda médica, ele é um indivíduo, não uma média — é único. Parece chavão, mas pensar assim faz uma diferença brutal. Cada paciente tem uma história que deve ser levada em consideração. E isso implica, muitas vezes, não seguir as diretrizes médicas. Há os que querem se submeter a tratamentos menos eficazes, mas menos invasivos. Há os que simplesmente não querem prolongar a vida com má qualidade. A decisão deve ser primordialmente do paciente. Sempre. E, quando ele não tem mais condições de decidir sobre o fim da vida, cabe aos parentes fazê-lo.

No fim da vida, doente, seu pai, o filósofo Norberto Bobbio, não foi submetido a nenhum tratamento extraordinário. Foi uma decisão sua?
Em outubro de 2003, meu pai completou 94 anos em condições bastante boas. Fisicamente ele estava um pouco limitado. Já não saía de casa, conseguia, no máximo, caminhar do quarto para o banheiro ou para a sala. Mas se locomovia sozinho. Festejamos o Natal daquele ano em sua casa. Foi uma alegria. Dois dias depois, porém, ele pegou uma pneumonia. Com dificuldade para respirar, teve de ir para o hospital. Lá, foi tratado com antibióticos, antitérmicos e recebeu oxigênio. Recuperou-se e retornou para casa. Em 6 de janeiro de 2004, li os jornais para ele, que compreendeu tudo. No dia seguinte, piorou drasticamente. A febre voltou, seu estado geral se agravou. Dessa vez teríamos de tomar a decisão se seria ou não entubado e submetê-lo a alimentação artificial. Eu disse não. Pensei comigo: até pouco tempo atrás ele teve uma vida maravilhosa. Mas, viúvo há três anos, se sentia só e estava deprimido. Nos últimos meses, repetia com freqüência a expressão latina taedium vitae para dizer que estava cansado da vida. A partir daquele momento, foi indo embora devagarinho, apenas com o suporte médico para controlar o mal-estar causado pela doença. Mesmo assim, quando o coração dele começou a bater mais fraco, as enfermeiras me olharam aflitas e perguntaram o que deveriam fazer. Nada, respondi. No dia 9 de janeiro ele se foi.

Como o médico pode saber com segurança a hora de interromper o tratamento?
É muito difícil, independentemente da situação do paciente. Trata-se sempre, repito, de uma decisão que deve ser tomada com o paciente ou com seus parentes. Mas sempre tento seguir a lógica de um movimento médico nascido na última década chamado Slow Medicine, do qual faço parte. O lema é praticar uma medicina o menos invasiva possível, que respeite a vontade do paciente.

Como o senhor cuida da própria saúde?
Tomo um copo de vinho por refeição, como muita verdura e consumo pouca carne, pouco sal e pouco açúcar. Sei que o vinho faz bem ao coração, o excesso de carne aumenta o risco de câncer de intestino, o sal está associado à pressão alta e o açúcar ao diabetes. Mas não me escravizo por isso. Se vou à casa de amigos e lá há um doce gostoso, como com muito prazer. Se o vinho é bom, bebo mais de duas taças, claro. Faço caminhadas apenas quando posso. E sempre de forma prazerosa — em meio às montanhas do Piemonte. Dou risada quando vejo as pessoas correndo em esteira.

O senhor faz check-ups?
O único exame que já fiz na vida foi o do sangue oculto nas fezes, para investigar possíveis lesões intestinais. Esse é um dos poucos exames que de fato conseguem predizer a existência de uma doença. Nem o PSA, o marcador para o câncer de próstata, eu fiz. Não é uma forma tão eficaz de detecção quanto se pensava. Alguns institutos canadenses excluíram recentemente a indicação desse exame, e espero que outros lugares façam o mesmo. Não tomo remédios. Nunca fiz um exame de coração.

0 senhor não tem medo de ter um infarto, para o qual pode estar caminhando sem sinais aparentes?
Claro que sim. Mas não vejo vantagem em fazer um exame se me sinto muito bem. Tenho 63 anos e. certamente, minhas artérias não são as de um garoto de 20. Sei que posso ter uma lesão. Mas sei também que, seguramente, os exames e os procedimentos médicos não vão me garantir uma sobrevivência serena. Prefiro viver sem saber. Em minha opinião, não faz sentido eu me sentir bem e ir ao médico para tentar saber quando vou estar mal.

0 que seus pacientes acham de suas opiniões?
Os que discordam não voltam mais. Posso lhe garantir que a maioria volta.

O que o senhor aconselha a quem está bem de saúde e quer se conservar assim?

Tente levar uma vida serena. Não tenha como objetivo chegar aos 70 anos com o mesmo vigor que tinha aos 50. Desfrute a vida e não se prive de prazeres. Hoje, quando as pessoas se reúnem à mesa com os amigos ou com a família, não dizem mais se gostam ou não de determinado prato, mas se podem ou não comê-lo. Isso significa invariavelmente comer mal. Deve-se comer um pouco de tudo. Inclusive quando se está doente. Aqui os médicos pecam novamente. O paciente que sofreu um infarto vai ouvir da maioria dos especialistas a recomendação de eliminar a gordura do prato. Eu não concordo. Recomendo a meus pacientes que comam queijo, mas não um queijo qualquer. Escolham um produto de excelente qualidade, mesmo que ele custe mais. Toda noite se deliciem com um pedacinho dessa maravilha, deixando que ele derreta na boca bem devagar. O mesmo vale para todo tipo de alimento, seja salame, vinho, sal ou açúcar. Comam com moderação e vivam com serenidade. Não existe receita melhor de saúde.